O
cheiro do mundo
O meu carro deu um problema que não
entendo bem. Deixei mais cedo no mecânico. Agora, no ônibus, sinto-me
incomodado com a quantidade de gente ao meu redor. E ainda tem um cidadão do
meu lado que fede. Como a pessoa consegue acordar e já começar a feder dessa
forma? Será se ele não tomou banho? Ele está arrumado e com gel no cabelo, uma
farda do trabalho. Ele fede mesmo!
Chego ao trabalho. Estou com o
cheiro do cara fedorento do ônibus. Em mim ficou o cheiro o dia inteiro. No fim
do expediente, paguei um táxi até a oficina. Estava fechada.
À noite, tomo três banhos e o cheiro do filho da
puta não sai de mim. Tomo um remédio e durmo. De manhã, acordo atrasado. Não
ouvi o despertador. Acordo suado, minha cama está toda molhada de suor. É o calor.
Como estou atrasado, é melhor eu pegar o carro só mais tarde. Estou no ponto. O
cara fedorento também. Afasto-me dele. Perco o ônibus, mas ele entra. Atraso-me
mais 15 minutos, mas não sinto novamente aquele cheiro. Quando passa outro
ônibus, entro. Como sempre, cheio, e cheiros horríveis. Hoje sinto mais quatro
pessoas, todas ao meu redor, fedorentas. Pessoas são cheiros, orifícios e
desejos. Por isso tanto fedor, afinal, liberamos variados odores. Podres
odores. Percebo isso agora. Cheiro minhas mãos, está com o cheiro do ferro que
seguro para me equilibrar, minha mão cheira a suor de outras mãos. Talvez
cheiros de até outras coisas. Tento me equilibrar sem segurar nos ferros do
ônibus, não consigo. Equilibro-me nas costas de uma das pessoas podres. Equilibro-me
numa mulher. Ela se incomoda. Talvez não goste do meu cheiro. Eu tiro minha mão
de seu ombro. O motorista breca de vez. Eu caio empurrando as pessoas.
Levanto-me pegando no ferro. Largo de vez, ele fede. Desequilibro-me e encosto
meu rosto no cabelo de um cara que estava em minha frente. Foi castigo.
Cheirava podre também. Aceito e vou segurando as barras de ferro. Uma pessoa
levanta, vou sentar. Na cadeira tem umas manchas verdes bem fraquinhas. Não
deve ser nada, sento-me. Olho minhas mãos, círculos amarelados mexem-se. Que
porra é essa? Só posso estar doidão? Que remédio foi que tomei ontem? Esfrego
uma mão na outra, as cores amareladas espalham-se. Esfrego minhas mãos na
calça, olhando para o chão do ônibus, cheiro-as. As minhas mãos lembram cheiro
de carniça, cheiro de gente morta. Você já sentiu esse cheiro? Olho o chão do
ônibus, tem manchas verdes movendo-se e indo para o acento. Levanto-me de vez,
as pessoas olham-me, a cadeira está cheia de bolas verdes. O cheiro delas é de
esgoto enlodado. Minhas mãos estão podres. As pessoas fedem a lodo de suor.
Meu ponto!
Empurro algumas pessoas e desço.
Ainda estou sujo na calça com as bolas verdes, e nas mãos com as bolas
amarelas. A rua fede à merda e vômito. Fede a rato morto. Fede à cachaça. A rua
fede. Não aguento. Entro no trabalho, o porteiro tinha cheiro de cu. No
elevador, graças a Deus, só!
Uma sombra negra aparece ao meu
lado, não sei como, ela sorri pra mim. É um humano disfarçado de sombra. Só
pode. É um homem, um porco homem, ou o cheiro do filho da puta do cara do
ônibus que começou a feder em mim e não saiu mais? É, sim, por causa desse
filho da puta que está acontecendo isso.
Volto a mim. Meu colega de trabalho está do meu
lado.
_José?
_Opa! Bom dia! – ele fede.
_Choveu, foi? Você está todo molhado.
_Deve ser o fedor que me contamina. Me deixando de
mau humor. Me fazendo suar feito porco!
_Como?
Ele ouviu, mas tem medo de mim, é um bom demagogo.
O meu andar. Saio do elevador. Ele
não fala comigo. O andar fede a papel, dinheiro, cocaína, bunda amassada, pica,
absorvente, sangue, cuspe, KY e cola. Fico tonto. Entro nas escadas e desço. As
paredes estão cheias de cheiros, cheiros de sangue, sangue humano, e suor. Será
que estou ficando louco? Pego um táxi. O taxista veio conversando comigo. Veio
falando sozinho. Falava demais. Geralmente quem fala demais fala só. Ele fedia.
O cheiro dele não era muito diferente do ônibus. Parecia também o cheiro de
muitas pessoas reunidas, só que com lavanda. Aquela lavanda de banheiro
público. Talvez nem isso, não tem definição. O cheiro de quem fica perto demais
das pessoas é o mais insuportável. O cheiro de todos é o pior. O táxi dele é insuportável! Não vou tampar
meu nariz, ele estranharia. Não quero que ele chegue perto de mim. Desço na porta de minha casa. Pego no
dinheiro, fede a todos, ao pior cheiro. Entrego minha carteira por inteiro e
entro correndo em casa. Tranco-me.
Aqui dentro está tudo normal, a não ser pelo
cheiro de minha roupa. Em casa fico nu.
Deito-me na cama. A cama cheira bem,
cheiro de amaciante.
Acordo. Estou todo suado, inclusive
minha cama. Levanto de vez. A cama fede a minha pele. Minha pele fede. Entro no
banho. Ensaboo-me durante 40 minutos. Passo o sabão e tiro. Cheiro-me. Passo e
tiro. Cheiro-me. Tiro o sabão e passo. Passo a mão pelo escroto e pelas bandas,
cheiro. Tiro e passo o sabão. Degusto-me. Enfim, fico bem. Cheiro de sabão pela
pele. Alívio. Jogo a toalha no lixo. Passo a mão em meu cabelo e cheiro, minha
mão fica com alguns cabelos, poucos. E fede, como sempre, fede. Totalmente
fedida. Parece pentelho suado. Vou até o quarto onde guardo quinquilharias.
Encontro uma antiga máquina de cortar cabelos. Raspo todos os cabelos do corpo,
inclusive os do cu e as sobrancelhas. Entro na internet e procuro sites que
vendam madeiras e aço. Compro barras de aço e pedaços grandes de madeira,
parecidos com porta, pago tudo no cartão.
No outro dia, elas chegam, eles
deixam em minha garagem. Paguei um adicional para chegar em até 24 horas. Isolo
um quarto com o aço. “Foi complicado, e suei muito, mas tomava banho a cada
cinco minutos”. Jogo tudo que não presta daqui de casa dentro do quarto.
Lençóis podres com meu cheiro. TV cheia de marcas de mãos que não saem nem com
pano molhado. O computador cheio de marcas de mão e espermas grudentos, esse
não jogo. Fogão, sim, geladeira, não, preciso de água gelada. Jogo a cama e
também o colchão, vou limpar o chão e dormir nele. Jogo celular cheio de minha
saliva impregnado do uso. Todas as minhas roupas. Percebo que aqui dentro não
preciso delas. Micro-ondas vai junto... Tudo inútil e com cheiro de casa.
Pronto, toquei fogo, agora estou só. Eu e as paredes e mais nenhuma mentira
perto de mim, nenhuma mentira com cheiro de utilidade. Nenhum bafo, nenhum som
de voz. Isso fede também, o som de voz. Deito no canto da sala e durmo. Quando
acordo, as paredes estão todas amareladas, parecem velhas. Sinto um leve cheiro
de vômito, sinto uma fome tremenda. Vou até a geladeira, pego uma maçã. Ela
cheira bem. Não como. Fico cheirando-a. Vou até o computador, ele fede, mas
daqui posso conseguir muitas coisas, inclusive comida. Entro no site onde vende
aço e madeira. Vejo um link: ‘Caixões de aço cristalizado. Impenetráveis.
Perfeito para descansar em paz’. Acesso. São caixões feitos sob medida. Depois de
fechado, não abre mais, só se for aberto por dentro. Mas, para testar, você
pode se fechar por dentro e ver que realmente tem espaço para o futuro dono
morto e seus pertences. Comprei no cartão.
Chegou depois de dois dias. Dois
dias loucos de cheiro de esgoto aqui em casa. Esgoto, cu, lodo, merda, vômito,
pele, pentelho, olho, mão, suor, saliva, voz, bafo, perna, vizinhos, sons,
paredes, ralo, órgãos, risos, lembranças, responsabilidades, vagina, esperma,
sangue, medo, ou seja, dois dias enlouquecedores. Por duas vezes pensei em me
matar.
Chegou o caixão, na garagem. Fui até
lá. Muito pesado. Vai ser aqui mesmo que entrarei. Fui até a cozinha, peguei a
maçã. Talvez tenha sido o cheiro dela, conservado pela geladeira, que me
salvou, pra pelo menos eu adormecer sem sentir cheiros. Entrei. Depois que eu
adormecer, não acordarei mais. Penso. Não tenho coragem de comer a maçã, ela
cheira muito bem. Vou morrer de fome e de sede, mas não como a maçã. E também
não beberei água. Ela tem cheiro de verme e fezes. Aqui dentro, não preciso de
nada. Só quero fechar os olhos e, cheirando a minha maçã, esperar. O homem é
uma merda para o mundo. Por isso o mau cheiro. Essa ideia formula-se como uma
resposta.
Depois de alguns minutos dentro do
caixão, não sei quantos, se poucos ou se muitos, sinto o cheiro de morte,
cheiro podre, decomposto, putrefato, corrupto. De liberdade.
Tem uma entrada para o ar. Mas deixo fechado. Vou
dormir. A escuridão é uma mãe nesses tempos de falsas realidades. Aqui dentro é
tudo mais real. É tudo mais ... vida. Apesar do cheiro já me incomodar. Estou
quase dormindo, meus olhos estão cochilando. O que me deixa feliz é saber que
não vou sentir o cheiro de meu corpo apodrecendo. Alguém sentirá meu cheiro
apodrecendo e entenderá porque apodrecer é ter cheiro de vitória, para o
próximo.
Um som bem longe. TCHIBUMMMMM!
Parece que algo caiu na água. Um
clarão...
Acordo. Estou deitado. Alguma coisa
derrubou meu caixão. Estou com fome. Muita fome. Preciso comer. Não consigo
sair do caixão. Desisto, durmo.
Acordo! Não sei quanto tempo depois, abro por
reflexo a entrada de ar, não vejo minha casa. Vejo um clarão insuportável. Não
sinto cheiro de nada.
Agora, sinto cheiro de fumaça. Abro a porta do
caixão. Nele, fico em pé. Tudo está destruído. Não vejo casas, árvores. Tudo,
tudo destruído. Olho para o chão, dentro do caixão, uma maçã. Pego e a cheiro.
Como-a.
O cheiro podre acabou. Saio
caminhando, acho mais algumas frutas debaixo dos destroços. Como-as. Feliz,
sinto que não tem mais o cheiro. Estou completo. Enfim, vivo!
Depois de caminhar algumas horas, vejo um caixão
de aço cristalizado. Será que é o meu? Não é. Esse está fechado. Ele se abre.
Dele, sai uma mulher. Ela me vê e sorri.
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Conto publicado em 2010 no livro 'Imagine alguém te olhando do escuro'
Leia o livro completo clicando no link abaixo:
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