O derradeiro
No canto mais escuro, no local mais vazio do
bar, com copos de cerveja pela metade e brigando contra a quentura para não esquentarem, existiam Franco e Luís.
Franco pedia a confiança do amigo mais uma vez:
_Você só tem que grudar o recado em mim. Faz
o serviço
completo. Os equipamentos necessários e
as fitas estarão na
bolsa. No final, você leva a bolsa. Deixei uma boa quantia na sua conta. Isso
sem falar na nossa amizade. Posso confiar?
Visivelmente, um breve silêncio ecoa. Luís
conjectura. Franco espera. Os dois olham-se nos olhos.
_Você sabe que pode confiar em mim. Onde está
o recado? – indagou Luís.
Franco procurou no bolso da camisa de botão. Nada. Levantou-se, procurou nos bolsos da
calça, e
nada. Agoniado e suando, lembrou que tinha enrolado e guardado na carteira o
bendito recado. Abriu a carteira com um riso no rosto e deu para o amigo um
pedaço de
papel com linhas escritas à mão.
_É um
poema? – perguntou,
retoricamente, Luís.
_O derradeiro – assegurou Franco. Ele estava
sentado com um riso celestial encravado ao rosto, como regra, e erguia o copo
de cerveja com sua mão
direta, como se fosse convidar o amigo para um brinde.
No outro dia, à tarde, Franco colocou em uma
bolsa: uma pá, uma enxada, copos descartáveis, uma garrafa de água mineral, uma
fita adesiva e um frasco de plástico. Trancou sua casa. Janelas, cadeados e
portas. Antes de sair pela porta da frente, não sentiu saudade do que deixava.
Pela rua, andarilho, caminhou para o local
que escolheu há cinco meses. O local era um matagal na beira do rio.
Franco olhou para o rio. Tinha certeza que o
rio refletiria pela última vez seu olhar. Nele, ele banhou e brincou quando
criança e
jovem. Quando adulto, muito da vida acinzentou. Ficaram sem graça as águas vivas e doces, sobrou a nostalgia
em sua memória.
Franco, certeiro, onde tinha planejado, começou a cavar. Quando atingiu a profundidade de
três palmos, parou. Deixou a
pá e a enxada dentro da bolsa. Pegou um dos copos descartáveis de plástico e a
garrafa de água. Pegou o frasco plástico. Encheu o copo d’água e abriu o
frasco. Dentro tinham pílulas de diversas cores. Com satisfação e calma, bebeu um copo
d’água com as pílulas coloridas, como o arco-íris, em sua
língua. Engoliu sem muito esforço.
Caminhou até o
buraco e deitou-se na terra fria e marrom. Ficou observando os raios amarelados
do sol. Observou o céu.
Ouviu com mais atenção
alguns pássaros cantarem. Ainda
é possível ouvir pássaros cantarem nestes tempos. Radiante, pensou. Ainda
consciente, cantarolou algumas palavras: Eu vou indo, meu bem. Enquanto o
sol não
nascer, não
voltarei, meu bem. O sol não vai
nascer... ; durante esse momento seus lábios
escarneciam.
No horário combinado, Luís chegou ao local.
Viu o amigo deitado. Sua pele já não
tinha mais vida. Seus lábios
gracejavam.
Luís, sem perder tempo, foi até a bolsa,
procurou e achou a fita adesiva. Desceu até o buraco e colou na camisa do
falecido amigo o recado que recebeu um dia antes no bar. Luís saiu do buraco e,
com pressa, começou a
enterrar o amigo.
Enquanto a terra era jogada por Luís sobre a
cova rasa, no corpo frio e suicida de Franco, no recado, o poema derradeiro e
suas palavras escritas a punho flutuavam.
Na alma residem afetos, abismos & engenharias.
Porém, descobri que não é a vida que rege a alma
A alma, como um motor, rege a vida.
A culpa pertence a quem espera pela morte.
Leia o e-book miniatura do livro aqui:
http://issuu.com/joseaugustosampaio/docs/ebookminiaturaafetosabismosengenhar
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Comentem, mas deixem seu contato para que eu tenha o direito de resposta.