Hora
da refeição
Uma seringa com seu tubo de ar preenchido de duas substâncias líquidas.
Casa escura. Medo e alívio. Alegoria utópica. Dor e intenção. Sensações que não resignam, nem
vingam ou vigiam. Nove tipos de afetos direcionados e abandonados à mercê por
horas a fio, por meses a perder de vista, no peito. A dor era abismo. A coragem
que lhe sobrou tornara-se engenhosamente motivo para que a sua pele corasse. A
vontade de ir pelo lado além era maior que a vontade de vir para o lado que já
vem. O fluxo é mais belo quando a gente não tem por que e
nem pra quê.
Ele estava sentado, ouvia um som que lhe trazia uma melancolia boa. O
som era instrumental. Uma tristeza reconfortante e reveladora. Todas as
tristezas são reveladoras. Ninguém iria bater em sua casa. À sua porta. Não. Ele não recebia visitas
há tempos. Há tempos sem composições e menções de seu nome em
rodas sociais. O seu grande amor cansou das mesmas cores das paredes amareladas
e suspensas, mofadas. Velhas, sem valias expostas. Estava chovendo e os pingos
caíam com graça e plenitude. Era uma graça aquém, uma
plenitude voraz.
Uma seringa com seu tubo de ar preenchido com duas substâncias líquidas e
letais na veia. Na veia que fica entre o braço e o antebraço. Seu fígado,
pulmão e baço caíram junto com seu corpo sobre o chão sujo e sedento.
O chão tem fome sobre nós. E esse chão estava há
dezessete dias sem uma faxina.
Cinco minutos depois, por coincidência(?), em sua porta, bateu um
velho conhecido, que queria revê-lo. Estava passando por perto e lembrou-se do
amigo sumido. O velho conhecido bateu à porta por alguns minutos, bateu até
insistentemente, e ninguém atendeu. Relembrou-se dos velhos tempos e pensou:
pularei o muro e vou dar um susto no safado, quando ele chegar! Em outros
tempos, eles já pularam outras nuvens, moinhos, chuvas e muros velhos. Mas essa
noite não seria o velho amigo que faria a grande surpresa, mas Milos. Ele era
o dono da cereja do bolo.
O velho amigo, com dificuldades, pulou o muro sem reformas há sete
anos. Assim que cruzou o quintal, ele ouviu um som bem baixinho que tocava e
vinha da sala da casa de Milos. A porta estava aberta. Uma brisa não deixava o ambiente
quieto. E um ar inquieto de liquidez era o dono da vez. O velho amigo adentrou
a sala e, sem muito esforço, depois de caminhar a passos
cuidadosos, maneirosos, pela casa, descobriu o corpo de Milos, torto e caído ao
chão.
Uma ambulância chegou ao local em vinte e nove minutos. Milos era o defunto,
mas sentiu em suas costas o frio do estofado da maca. Ele tentou abrir seus
olhos e não conseguiu. Ouviu os médicos afirmarem que ele estava morto.
Falecido. Milos tentou gritar, profanar, explanar! Nada. Ele estava vivo. Eu
estou vivo! Estou vivo! A seringa batizada não deu certo? Gritava e
perguntava-se.
No IML, foi posto dentro de um saco preto, o qual era muito quente e
o deixou assustado com o silêncio macabro que se seguiu até o outro dia. Seu
corpo, ou Milos, pois ainda era vivo, mesmo dado como morto por médicos e
especialistas em vida, passou a noite chorando, sem lágrimas, e outras vezes
gritando, sem som, e ainda se perguntando o motivo de tal atrocidade acontecer
a ele. Milos passou a noite dentro de uma gaveta para mortos, com seu nome
registrado na frente da gaveta. Milos Couto.
Milos passou a noite perguntando a si mesmo por que seu velho amigo
havia de aparecer justo naquele dia. Será que ele precisava de mais alguns dias
apodrecendo no chão de sua casa para ter morrido de vez? As amizades nos salvam?
Ele se perguntava em declínio.
Pela manhã, ele percebeu seu corpo sendo transferido para outro local. Mais
tarde, por um homem que cheirava à morte, rola e maldade, ele foi vestido. No
caixão, queria demais olhar quem estava em seu velório. Mas ele não conseguia abrir
os olhos. No entanto, algumas pessoas chegavam perto de seu ouvido e lhe diziam
algumas palavras.
Ele respondia. Morto?!
Alguns dos visitantes sorriam em seus tímpanos sua desgraça e a sua falta
de coragem com a vida. Ele xingava esses escrotos e jurava-lhes: quando eu
realmente morrer, vou atormentar vocês. Outros visitantes nada lhe disseram.
Mas ele tinha certeza que, na morte, em seu velório e enterro, apareceriam mais
pessoas que em seus últimos dias. E outros visitantes choraram perto dele, mas
o ódio pelos que nada lhe disseram e pelos que lhe sorriram no ouvido com sua
desgraça era tão maior que ele não se importou, nem se comoveu com
quem chorava por ele.
Mais tarde, incomodou-se com o sol batendo na sua cara, entrando pelo
vidro transparente “que provavelmente fica sobre meu rosto, no caixão”. Ele falava
isso ainda sem ser ouvido. Ele também gritava, esperneava aos prantos, pedindo
que alguém percebesse o quanto ele ainda estava vivo. Porém, ninguém entendia
seus suplícios mudos. Seus gritos vácuos.
Foi enterrado sem muito choro. Mas Milos chorava, não era a hora de
ir. Havia se arrependido. Ele ainda estava vivo. Intrínseco.
Sendo enterrado, com tudo ficando aos poucos mais escuro e findo, ele
ouviu seu caixão quebrando-se com o peso conseguinte de sete palmos de terra jogadas
sobre ele.
_Ainda compraram pra mim um caixão fodido! – em
mais um grito sem ser ouvido, esperneava.
Dentro do caixão, caía terra sobre seus pés. E, não demorou muito,
ele começou a sentir uma coisa nojenta, pegajosa e rastejante pela sua canela.
Era o primeiro verme aspirante a dar uma mordida no defunto falante. Quando
sentiu sua pele ser saboreada, conseguiu soltar de dentro de sua garganta um
grito profundo. Todos que estavam por aquele mundo de terra vermelha ouviram,
mas, a quem estava indo de volta “à sua vida” pelo cemitério, sua voz inflamada
não fez nenhum
sentido.
Ele começou a sentir sobre sua pele outros vermes e o perigo. Um alerta
enviado pelo medo o dominou. Ele podia gritar, mas não movia seu
corpo, nem conseguia abrir seus olhos.
Era a hora da refeição.
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