Rio Parnaíba
O rio Parnaíba segue. A corrente de água vai
rápida. A poluição da cidade se faz sentida em plásticos. Mulheres levam e
lavam roupas, meninos nus e meninas peladas correm pela beira do rio, eles
riem. Adolescentes tecem olhares para adolescentes. Na ponta da beira do rio,
surge dona Rita.
Dona Rita tem 29 anos e mora na beira do rio
Parnaíba. Ela tem cabelos lisos negros, olhos grandes arredondados, pernas
grossas, canelas finas e raspadas, coxas douradas, rosto de inocência. Usa sandália
de couro e tem cintura fina esculpida. Ela mora com o marido e dois filhos e é
bem cuidadosa com a beleza.
De noite os vizinhos se chocam com o amor que
vem do seu quarto. Por esse motivo, ela lava a roupa afastada das outras
mulheres. E pelo fato de atrair todos os olhares de admiração e desejo, ela
atrai inveja. Pro bem ou pro mal, prefere ficar distante das outras lavadeiras.
Já insistiu em estar junto, mas elas a ignoram e a olham com desprezo.
Com um pouco de fome, vai Rita trabalhando
como dona de casa, fazendo comida (quando tem), cuidando dos filhos, da limpeza
da casa, ajudando o marido a catar lixo na rua, ajudando o marido a aguentar a
realidade fadada da vida, contanto historinhas de fadas e duendes de outro
mundo para os seus filhos, com o peso do olho dos outros nas costas, com o peso
do olho dos outros na bunda, nas coxas, vai Rita com o peso das roupas na
cabeça, com calos na mão, com a boca carnuda, com a vida torta como a sua
assinatura. Lá vai lavar as roupas na beira do rio, mulher de fibra, mãe
assídua, com jornada tripla. Multiplicada a outros fatores e motores presentes
nela.
Além de viver abaixo da linha da pobreza,
Rita, com a saia acima do joelho, até o meio de suas coxas, agacha-se e esfrega
uma roupa noutra. “Lavar, lavar, lavar, pra cuidar da casa, da família...” –
cantam as outras lavadeiras, longe de Rita. O sol brilha, uma brisa assovia a
música. Hoje é quarta-feira. Hoje é dia de Rita. O rio segue e segue belo.
Muito mato ao redor e, ao longe, o som das outras lavadeiras cantando. Um som
estranho no meio do rio. “Oxe, diacho, o que foi isso?”. Rita pensa, espreita e
volta ao seu ofício. As lavadeiras cantam, lavam. A brisa canta, uma sensação
de paz domina o lugar, um passarinho passa voando, parecia fugir, mas voava lindamente.
Uma flor desabrocha, bem ao lado de Rita, ela não percebe esse fato. Está
distraída, concentrada, pensativa (pensando em coisas que eu nunca saberei),
linda, com fome, cansada, preocupada com os filhos e com as criancinhas, que
viu ontem na TV, morrendo de fome em algum país africano. Coxas douradas
molhadas com a água do rio, muito sabão de coco, muita vontade de cortar o
cabelo, vontade de estudar, vontade de viver. É Rita levando, lavando, sendo
lavada...
Em frente à Rita, uma sombra se forma debaixo
d’água. Quando ela percebe, e vai de olho na sombra, um homem branco e nu sai
do rio com os braços abertos. Rita, assustada, tenta virar-se e correr, mas ele
está perto demais e a puxa pelos pés. Ela cai e bate a cabeça no chão.
Debatendo-se, gritando, tenta levantar-se. O agressor, todo molhado, babando e
com olhos vermelhos, agarra os cabelos e bate duas vezes o rosto dela no chão.
Ela sangra e grita. O homem nu bate pela terceira vez a sua cabeça. Ela já não
grita mais, chora. Ele a puxa pelo cabelo da nuca, puxa a vítima para dentro
d’água. Antes de desaparecerem no rio, ela grita novamente, uma das lavadeiras
ouve seus gritos e entoa o canto das outras lavadeiras para que o som fique
mais alto. Rita afunda na água e desaparece. No rio Parnaíba, bolas de
respiração flutuam e somem. Rita segue, o rio segue, a vida segue, e é levada,
lavada, esquecida.
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