A miséria
come a cabeça
Chico ficava em casa, muito magro e de fala
devagar, preferia revistas pornôs e quadrinhos rasgados. Pedro, mais forte,
mais alto, mais inteligente, queixava-se sempre ao seu irmão:
_Chico, todo dia é a mesma coisa. De madruga
é essa frieira toda. O cigarro de palha acaba antes do vento parar. Tem uma
hora da madrugada em que o vento para. Aí a gente dorme. Desperta com o galo
Frei. Ainda está escuro e você, o protegido do papai, só porque ainda tem 11
anos, vai ver putaria e ler essas histórias babacas que não têm nem fim, a
maioria tá rasgada. Disso, vou pra roça, labuto o dia todo. O pai me trata como
um escravo. Às vezes, até me bate com pedaço de cipó. E ainda aquele filho da
puta não deixa eu fumar meu cigarro de palha. Desgraçado. A mãe morreu e deixou
a gente com essa alma penada. Isso só pode ser coisa do demônio, do cão. A
miséria come a cabeça da gente, deixa todo mundo mais burro.
_Pedro, o pai ama a gente. – Chico, calmo,
diz ao seu irmão.
Os dois dormem. A miséria come o quarto
deles. Os pés de cada um foram limpos com água de sete dias, reaproveitada.
Nessa seca, tem que comer até terra, se for preciso, para sobreviver. O pai de
Chico e Pedro sempre repete isso. Na cozinha, sem geladeira, algumas batatas no
chão (Machado está certo). Um forno à lenha, que em alguns lugares do mundo é
chique, rústico, moderno. Na sala, dois pedaços de pau. Ferramentas para obrar
na roça. Uma TV em preto e branco. Um jarro redondo com revistas e quadrinhos
antigos. A porta dorme entreaberta, apesar do frio. O pai gosta de ouvir o
vento. Dizia o Chico para o Pedro.
Outro dia, à noite, o pai dos meninos vinha
com um quilo de lagarto, carne bovina, o ouro do mês para eles. Chico saiu
correndo de felicidade e abraçou o pai. Pedro esbravejou: lá vem ele com a
corrupção. Pedro adora essa palavra, ouvia muito na TV, sua maior paixão. Antes
que o pai entrasse em casa, ele tropeça, cai e bate a cabeça no vaso de
revistas.
_Chico, o que houve? – Pedro corre até a sala
e vê seu pai no chão com a cabeça sangrando. Chico sai chorando, gritando
socorro. Os vizinhos vieram acudir, trouxeram rezadeira, curandeiro, chegou até
ambulância, mas só depois de quatro horas, e nada deu certo. O pai morreu.
No outro dia, Chico acordou e pegou a carne
que havia guardado no meio do sal. O Pedro viu e tomou a carne dele.
_Chico, você quer comer a carne? Não podemos.
É a herança que o papai deixou pra gente, uma herança e lembrança. Ele foi
enterrado, mas essa carne ficará como legado do pai (outra palavra da TV e que
ele sabe aplicar). Vamos fazer com ela o que vi outro dia na TV. Vamos pegar
aquela garrafa, botar álcool dentro, e guardar a carne. Ela vai se conservar.
Vi na TV.
_Tou com fome, Pedro, minha barriga tá
doendo.
_Aguente a fome, vamos comer batatas.
_O pai não fazia isso, Pedro. Eu tou com
fome. – Chico diz, já chorando pela tristeza e de fome.
_O pai era um filho da puta.
Chico, revoltado, parte para cima do Pedro,
como um leão muito magro e morto de fome. Pedro esmurra sua cara e, quando
Chico cai ao chão, Pedro chuta-o na barriga. Da boca de Chico sai sangue.
_A miséria tá comendo sua cabeça, Pedro. Seu
desgraçado!
Chico sai correndo e some.
Na estrada, pediu esmola. Tentou não entrar,
mas pela fome, chupou. Cedeu. Apanhou. Com 15 anos, já em São Paulo, começou a
lavar louças e limpar banheiro. Com 17, voltou pras ruas, roubou, deu, chupou,
pediu, chorou, implorou, desmaiou e, como um bom humano, também sorriu. Pensou
em voltar para a sua terra, não foi. Mendigo, arranjou um emprego graças a uma
ONG, que futuramente iria fechar por receber verba sem licitação do governo.
Voltou a trabalhar limpando banheiros. Dessa vez, mais confiante, mais vivido,
mais sábio, mais gordo, barbado e com vinte e um anos, decidiu voltar para
buscar uma coisa que lembrava os seus bons tempos de infância, as revistas em
quadrinhos sem os finais, pois estavam com as páginas rasgadas. Chico também
queria ver seu irmão Pedro, contar a ele como a miséria dominou o mundo.
Era de madrugada, aquele frio não era mais
aquele frio. Estava um pouco mais quente. A roça que ele morou naquela época
estava menor. Viu que seus vizinhos eram outros donos que compraram as terras
dos seus vizinhos, compraram parte da roça. Chico queria fazer uma surpresa
para o irmão. Entrou na casa, que dormia com a porta entreaberta, viu suas
revistas no mesmo lugar. Com um sorriso no rosto, foi pegá-las. Depois de
abaixar, um pedaço de pau foi batido contra sua cabeça, com a força com que
abatem um gado. Era seu irmão Pedro, que assim dito, não reconheceu seu irmão
Chico, diferente e calejado pelos últimos dez anos, pois sua memória foi comida
pela miséria esfomeada.
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