sexta-feira, 15 de maio de 2015

Poema 'Dos sete sentidos' - recitado em vídeo





Dos sete sentidos


Eu cheiro tudo por fome.
A fome come aromas.
Veja bem, vejo tudo que sou
e o que sou, não ouço por aí.
Agarro o que amo
e o amor vinga em mim.
Acredito no que escrevo.
Eu sou Bem-te-vi.

Leia o conto - A voz



A voz

Salmos 29:4 - A voz do SENHOR é poderosa; a voz do SENHOR é cheia de majestade.
Apocalipse 14:2 - E ouvi uma voz do céu, como a voz de muitas águas, e como a voz de um grande trovão; e ouvi uma voz de harpistas, que tocavam com as suas harpas.
Apocalipse 19:6 - E ouvi como que a voz de uma grande multidão, e como que a voz de muitas águas, e como que a voz de grandes trovões, que dizia: Aleluia! Pois já o Senhor Deus Todo-Poderoso reina.

...
Acorde!
Está na hora de acordar.
Acorde!
Gelson abre os olhos e esquece a ordem como quem se esqueceu de um sonho. No banheiro, ainda sonolento, antes que ligue o chuveiro, ele ouve:
Acordou? Agora entra no banho e vai à luz, porque a iluminação te espera.
No primeiro momento, foi um susto. Mas por dentro ele sente uma sensação de poder, tranquilizando seu corpo com o cunho gutural e imponente do som da voz.
Quem é? Gelson pergunta, mesmo se sentindo muito bem. O que não vemos, mesmo quando o sentimento é bom, muitas vezes é desconfortável.
Eu sou a luz, as trevas, o estreito e o espaçoso. Sou quem te guiará para fora e sempre adiante, abrindo todos os espaços. Vamos. Faça a barba. Tome um banho. Vista seu melhor terno. Diz a voz.
Deus? – questiona Gelson.
Somos todos deuses. Parte dele. Inclusive eu. E você é minha parte física – a voz o esclarece.
Outras vozes, mais inconscientes, suplicavam para que ele não obedecesse ao chamado. Outra parte, porém, que comanda a ânsia e o desejo, fez-lhe seguir a voz ilustre. Na rua, a voz continua:
Hoje você não vai ao trabalho. O seu trabalho maior é com a humanidade. Olhe as pessoas nas ruas. Todas com caras sérias e sem alegria, sem sentido para ter cara. Você precisa mostrar-lhes o caminho.
Que caminho?
O caminho que mudará o mundo, o caminho que foi escrito desde o início dos tempos e que, por outro, já foi desistido de levá-los.
Que outro?
Outro. O outro criado por vocês homens. E que, de tanto pronunciado, hoje se diz construtor do universo e minha imagem e semelhança. Ou sua imagem e semelhança. Outro que se diz pai dos homens, mas o purga da liberdade. Veja: os miseráveis implorando por uma miséria menos dolorosa. Os ricos sozinhos escondendo-se para comer da maçã que Eva sagrou. Hoje, os homens, minha paixão, os homens construtores dos melhores desejos e obras, os homens donos da vontade de dominar o mundo, vão em pleno vapor para a autodestruição. E você, Gelson, você é quem mudará essa realidade. Trazendo de volta a liberdade, o amor, a verdadeira fé e a verdadeira sociedade. Destruindo e reconstruindo. Mesmo que sem você.
Gelson caminha debaixo do sol. De terno e calado. Ouvindo a voz gritar dentro de si.
Você é o demônio. Afirma Gelson.
Não. Não existe Deus nem demônios. Existem deuses e demônios. Existe vida. Depois dela, não há nada, senão solidão e arrependimentos. É em vida que se tem que construir o vale onde bestas, anjos, ateus, todos seguem uma só fé. A fé da igualdade. E em vida isso acontecerá, só os escolhidos, e que têm fé, continuaram. Mesmo que sem você.
Por que sem eu?
Porque, Gelson, a fé é para os fortes, mesmo que pareçam fracos. E você é forte, mas por dentro é fraco. Você não tinha fé, mas, ouvindo a minha voz, terá. E agora, com a minha voz e o dom de mudar isso: Vá! Reconstrua. – ordena a voz para Gelson. 
Quando ele está passando em frente a uma igreja, a voz ordena: entre!
O pastor grita: Deus está de olho em todos os pecadores, e quem prefere o caminho espaçoso e fácil, irá parar no inferno.
Ele não sabe de nada. Afirma a voz, que ordena: repita-me.
Gelson, ainda calado, levanta-se.
Vamos, grite, dê um grito e chame a atenção para você, depois me repita.
Com a voz em tom de desespero, Gelson grita. Todos param e o olham. O pastor diz: é Deus se manifestando nele. Gelson ouve a voz e retruca o pastor.
NÃO! Foi o demônio que vi se manifestando em ti. Ele aponta para o pastor. Todos presentes entram em colapso. Gelson continua: sim, o demônio sai de sua boca em forma de palavras. Hoje, quando acordei de manhã a voz do bom Deus veio a mim e me disse: “Vai, meu filho, chegou a sua hora de coletar o seu rebanho”. Até este momento, alguns dos presentes o olhavam com cara de repulsa, mas ele continua: Sim, vocês duvidam? Vocês têm coragem de duvidar da voz de Deus? Esta igreja está corrompida, este pastor vos fala mentiras a fim do dízimo. Este pastor é um grande depravado. A voz me diz agora do seu desejo por meninas que ainda nem sabem o que é beijo. O pastor, nesse momento, tenta retrucá-lo, mas ele não deixa. Gelson impõe sua voz e continua: Deus fala em meu ouvido. Fala de um paraíso que tenho que construir na terra. Deus diz que está chegando a hora, e que em breve alguém apertará o botão do novo início. Eu sou quem escolherá para uma sociedade mais livre, com mais amor e que siga o desejo do coração de todos. Eu sou o novo messias. E o bom inquilino de meu rebanho me conhecerá agora me olhando, olhando diretamente em meus olhos. Ele sobe em cima de uma das mesas presentes no local e encara a todos. Um silêncio geral come a sala.
Agora, Gelson, saia da igreja, quem merece sobreviver virá, e, quem não vier, você perdoará, mas antes diga: amanhã, no terreno que está baldio, a três quarteirões daqui, construirei a nossa igreja. A igreja que a voz de Deus me ordenou. Venderei minha casa e tudo que tenho. Então, com minhas mãos e pouco saber, construirei o templo. A voz e ele dizem, quase que simultaneamente.
Gelson desce da mesa e sai. As pessoas ficam paralisadas. Mas um senhor de 65 anos levanta-se e sai, vai atrás dele. Seguidamente, outras sete pessoas o seguem. E assim seguem o dia, invadindo igrejas e templos, profanando seus líderes e buscando novas ovelhas para a nova igreja, dita pela voz a Gelson.
No outro dia, no horário marcado, Gelson, que não dormiu porque a voz o atormentou a noite toda, falando desse novo futuro, estava com todos os equipamentos e material no terreno que ele havia prometido e, sozinho, começou a preparar o cimento. As pessoas foram chegando aos poucos e o ajudando. Em alguns momentos, ele subia em cima de um monte de areia e proclamava juras e profecias ditas pela voz.
Hoje já botei minha casa à venda, amanhã serei recompensando com o nosso templo maior reconstruído, diz-me assim a voz de Deus. E cada vez mais pessoas chegavam. No primeiro dia, o muro redondo foi erguido, no segundo dia, já haviam sido doadas cadeiras para que as pessoas sentassem e, ao fim do dia, ouvissem Gelson falando os seus sermões. No terceiro dia, o teto estava feito. E um terreno, antes vazio, agora tinha a primeira sede da Nova Igreja Para o Novo Mundo de Deus. No quarto dia, já haviam duplicado o número de fiéis. No quinto dia, Gelson conseguiu vender sua casa e doou o dinheiro para os miseráveis da rua.
Vá, deem a eles. A nossa Igreja se erguerá sem esse dinheiro, é o que me diz a voz. As pessoas precisam sentir o nosso amor fraterno e igual. Deus ama a todos da mesma forma. Vão! Deem seus pertences, a hora está chegando e só ficará quem confiar na voz. E assim foi feito, todo o dinheiro da casa de Gelson foi doado aos miseráveis da rua e alguns de seus seguidores o seguiram e também doaram tudo. Para se dedicarem a todo vapor à construção dessa nova fase do mundo.
No sexto dia, apareceram televisões para entrevistá-lo. Uma de suas seguidoras ficou cega sem explicação. E Gelson, na frente das câmeras, grita: a voz disse que a cegou, a mão de Deus a cegou, pois ontem ela duvidou de minha benevolência e da voz eterna em meus ouvidos. Mas irei perdoá-la. Que volte a enxergar. Por um ato de mágica, ela volta a ver as cores da vida. Gelson sobe em cima de um dos carros que ali estão por perto.
É com todo entusiasmo e gratidão que aceito esse carma de ouvir a sua voz, meu bom Deus! E você! Ele fala apontando o dedo para a sua seguidora que ficou cega e voltou a enxergar por causa dele. Você verá agora como as cores da vida são o que há de mais precioso. Se quer essas cores em sua vida, eternamente, não duvides da voz de Deus. Da próxima vez, farei cair uma de suas mãos. Diz a voz. E Gelson repete. Todos se assustam. Mas ele completa: é isso. Deus não perdoa quem duvida dele. Estamos no momento crucial, em poucos dias tudo mudará, e quem me seguir conhecerá as cores do novo mundo prometido pela voz em meus ouvidos.
No sétimo dia, aqueles outros que não o seguiram no momento em que ele esteve na igreja começaram a comparecer em seus sermões. Cada um que chegava, Gelson proclamava: duvidaste da voz de Deus, mas como me foi dito, devo perdoá-lo. Entre e se sente. Há muito que fazer por aqui.
No oitavo dia, aparecem fiscais da prefeitura e alguns policiais com ordem para que aquelas pessoas que estavam no terreno saíssem, pois o terreno pertencia à prefeitura e aquilo era invasão. Os seguidores de Gelson ficaram revoltados e a confusão estava para acontecer, quando Gelson, que já estava há nove dias sem dormir, ouve da voz: mande todos ficarem quietos e vá lá fora, direi a você o que falará para cada um dos que tentarem lhe prender e, no fim, você irá deixar-se levar.
Saiam todos. Fiquem quietos. Temos que respeitar a lei. E, assim como eu digo a vocês o que têm que fazer em suas vidas, eles também me ouvirão. A voz me disse e eu a seguirei.
Gelson vai para fora dos muros redondos da igreja. O primeiro policial que declara ordem de prisão ouve: Felipe. Felipe é seu nome. Sei antes de ver a sua identificação. Sei também que sua esposa está precisando de mais atenção e seu filho está com medo de seu sogro, que o assedia sexualmente. Você e sua mulher sabem disso, mas não fazem nada porque precisam do dinheiro que ele os oferece. Não temas irmão, Deus irá puni-lo em vida, mesmo assim você sobreviverá ao fim, que está próximo, mas Deus punirá o seu sogro. O inferno o espera. O policial chora e se nega a prendê-lo. O outro policial que vai para levá-lo também ouve outras verdades, dessa vez em seu pé de ouvido. Este cai de joelhos chorando. E assim segue. Dos oito policiais que foram com os fiscais, nenhum conseguiu cumprir as ordens. A voz ordena que Gelson suba em cima do carro da polícia e faça mais um sermão antes que ele siga preso.
Meu rebanho, ouça o que eu ordeno, e que a voz me fala: construam uma entrada subterrânea abaixo da igreja com dormitórios e espaço para rezar, e me esperem. Vocês têm 22 dias. Eu retornarei antes disso e ajudarei a terminar essa obra. Lembrem-se: a voz de Deus fala em meus ouvidos, mas os olhos de Deus estão em todos os lugares.
Gelson entrega-se a polícia.
Noutro dia, vídeos com o ocorrido tomam conta da internet, e o vídeo no qual ele fez a menina cega voltar a enxergar também vira mania na internet, pessoas no mundo todo veem os policiais desistindo da prisão de Gelson e o milagre que ele operou. As pessoas veem os policiais chorando e pedindo perdão. Nesse momento, o prefeito, depois de uma longa conversa a sós com Gelson, vai até a sua sala e liga para o governador, o convencendo a vir conhecer o tal profeta. E diz exatamente o que Gelson o ordenou a falar: a Nova Igreja está para ser erguida e, em poucos dias, o novo mundo, o mundo que libertará o homem, chegará. Com um aperto inexplicável no coração, o governador vem até a cidade para conhecer o tal profeta.
O governador também conversa a sós com Gelson e sai comovido da sala, com os olhos cheios de lágrimas, querendo ordenar que o liberem, mas, a pedido do próprio Gelson, o deixa preso. O presidente, que estava fora do país, mas já sabendo do que estava havendo naquela cidade, volta a fim de conhecer esse tal profeta, que em alguns lugares do mundo estava sendo chamado de ‘charlatão’ e em outros de ‘o novo Cristo’.
Senhor presidente, a voz de Deus disse-me que você viria hoje. Exatamente há dez dias do juízo final. O presidente sorri. A voz diz em seu ouvido: Gelson, fale dos seus segredos. Ele não cederá. Afinal, ele é o presidente. Depois fale de seus piores segredos, então assim ele cederá. E assim Gelson o fez. O presidente, descrente daquele que poderia ser um charlatão, ouviu-lhe como manda a obrigação do seu cargo, mas cedeu depois de ver seu próprio espelho dito pela boca de outro. Gelson termina e diz: A voz do SENHOR é poderosa; a voz do SENHOR é cheia de majestade. O presidente arrepiou-se e Gelson completou: infelizmente o senhor não será salvo, mas poderá salvar a todos com um ato. Está preparado para isso?
No mesmo dia, um pronunciamento é feito, Gelson foi solto e voltou para a sua Igreja. O presidente ordenou que todos construíssem abrigos subterrâneos ou procurassem algum, e mandou mensagens para as nações que eram unidas a nossa. E disse assim, como Gelson determinou: o mundo novo está por vir, da terra nasceremos novamente, façam o que a voz diz.
Na Igreja, Gelson ficou orgulhoso de seus seguidores, tudo organizado e do jeito que ele disse. Agora era só esperar. A voz não parava de falar e Gelson não conseguia dormir. Mas estava feliz com o que foi feito.
No trigésimo primeiro dia, uma bomba explode em um país do oriente. Algumas horas depois, outra bomba explode em um país perto do nosso. E assim, seguidamente, bombas explodem o mundo como a voz e como Gelson previu. Não se sabe se a primeira bomba saiu de nosso país, mas se sabe que a primeira bomba desencadeou uma explosão em massa de bombas atômicas. De 6 bilhões de pessoas, sobraram menos de 100 milhões espalhadas em todo mundo. Na cidade e no país de Gelson, quem o seguiu sobreviveu, e quem fez o que o presidente ordenou sobreviveu, apesar do presidente ter morrido. O seu avião caiu quando seguia para o seu refúgio.
No dia seguinte, quando ainda uma névoa de
poeira circulava pelos campos destruídos
e radioativos, Gelson trancou-se no quarto e dormiu.
Ninguém de seus discípulos bateu à porta. Ninguém também sabia o que ele estava fazendo ali. Talvez rezasse, talvez conversasse com a voz. Comentavam. Mas Gelson, cansado, dormiu. Setenta e duas horas depois, ele acorda e não reconhece o quarto em que está. Acha o cheiro horrível e se lembra de tudo que ocorreu. A voz sumiu? Pergunta-se. A voz sumiu? Meu Deus, a voz sumiu. Gelson chora.
Ele vai até o banheiro, pega a sua gilete de barbear e corta os pulsos, sem manifestar dor, para que ninguém o ouça e descubra que ele está em dúvida se tudo não passou de uma grande breve alucinação ou se foi um dom concebido por uma voz sem identificação.                                 

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Conto publicado em 2010 no livro 'Imagine alguém te olhando do escuro'

Leia o livro clicando no link abaixo:

 


Canibal - poema recitado em vídeo



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Canibal


Sou canibal.
A luz do sol toca minha pele
a devoro sem teorias e teses.
 

Sou canibal.
A brisa refresca minha alma
engulo essa dádiva
que me sara.
 

Sou canibal.
O mar batiza-me água e sal
degusto oceano
de forma natural.
 

Sou canibal.
Sob a força misteriosa da fé
como vasto a luz que vier.
 

Sou canibal.
Sua voz para meu coração
saboreio tons
do amor em fusão.
 

Sou canibal.
Reflexo em seu olhar
abocanho-te, mesmo se matar.
 

Sou canibal.
É de lei tudo ser alimento
você, a lua, o céu
o movimento.
 

Parte e tudo
sou extensão, loucuras
curas e abusos.
 

Canibal, mastigo da paz
aos surtos.

Leia o conto - O cheiro do mundo



O cheiro do mundo

O meu carro deu um problema que não entendo bem. Deixei mais cedo no mecânico. Agora, no ônibus, sinto-me incomodado com a quantidade de gente ao meu redor. E ainda tem um cidadão do meu lado que fede. Como a pessoa consegue acordar e já começar a feder dessa forma? Será se ele não tomou banho? Ele está arrumado e com gel no cabelo, uma farda do trabalho. Ele fede mesmo!
Chego ao trabalho. Estou com o cheiro do cara fedorento do ônibus. Em mim ficou o cheiro o dia inteiro. No fim do expediente, paguei um táxi até a oficina. Estava fechada.
À noite, tomo três banhos e o cheiro do filho da puta não sai de mim. Tomo um remédio e durmo. De manhã, acordo atrasado. Não ouvi o despertador. Acordo suado, minha cama está toda molhada de suor. É o calor. Como estou atrasado, é melhor eu pegar o carro só mais tarde. Estou no ponto. O cara fedorento também. Afasto-me dele. Perco o ônibus, mas ele entra. Atraso-me mais 15 minutos, mas não sinto novamente aquele cheiro. Quando passa outro ônibus, entro. Como sempre, cheio, e cheiros horríveis. Hoje sinto mais quatro pessoas, todas ao meu redor, fedorentas. Pessoas são cheiros, orifícios e desejos. Por isso tanto fedor, afinal, liberamos variados odores. Podres odores. Percebo isso agora. Cheiro minhas mãos, está com o cheiro do ferro que seguro para me equilibrar, minha mão cheira a suor de outras mãos. Talvez cheiros de até outras coisas. Tento me equilibrar sem segurar nos ferros do ônibus, não consigo. Equilibro-me nas costas de uma das pessoas podres. Equilibro-me numa mulher. Ela se incomoda. Talvez não goste do meu cheiro. Eu tiro minha mão de seu ombro. O motorista breca de vez. Eu caio empurrando as pessoas. Levanto-me pegando no ferro. Largo de vez, ele fede. Desequilibro-me e encosto meu rosto no cabelo de um cara que estava em minha frente. Foi castigo. Cheirava podre também. Aceito e vou segurando as barras de ferro. Uma pessoa levanta, vou sentar. Na cadeira tem umas manchas verdes bem fraquinhas. Não deve ser nada, sento-me. Olho minhas mãos, círculos amarelados mexem-se. Que porra é essa? Só posso estar doidão? Que remédio foi que tomei ontem? Esfrego uma mão na outra, as cores amareladas espalham-se. Esfrego minhas mãos na calça, olhando para o chão do ônibus, cheiro-as. As minhas mãos lembram cheiro de carniça, cheiro de gente morta. Você já sentiu esse cheiro? Olho o chão do ônibus, tem manchas verdes movendo-se e indo para o acento. Levanto-me de vez, as pessoas olham-me, a cadeira está cheia de bolas verdes. O cheiro delas é de esgoto enlodado. Minhas mãos estão podres. As pessoas fedem a lodo de suor.
Meu ponto!
Empurro algumas pessoas e desço. Ainda estou sujo na calça com as bolas verdes, e nas mãos com as bolas amarelas. A rua fede à merda e vômito. Fede a rato morto. Fede à cachaça. A rua fede. Não aguento. Entro no trabalho, o porteiro tinha cheiro de cu. No elevador, graças a Deus, só!
Uma sombra negra aparece ao meu lado, não sei como, ela sorri pra mim. É um humano disfarçado de sombra. Só pode. É um homem, um porco homem, ou o cheiro do filho da puta do cara do ônibus que começou a feder em mim e não saiu mais? É, sim, por causa desse filho da puta que está acontecendo isso.
Volto a mim. Meu colega de trabalho está do meu lado.
_José?
_Opa! Bom dia! – ele fede.
_Choveu, foi? Você está todo molhado.
_Deve ser o fedor que me contamina. Me deixando de mau humor. Me fazendo suar feito porco!
_Como?
Ele ouviu, mas tem medo de mim, é um bom demagogo.
O meu andar. Saio do elevador. Ele não fala comigo. O andar fede a papel, dinheiro, cocaína, bunda amassada, pica, absorvente, sangue, cuspe, KY e cola. Fico tonto. Entro nas escadas e desço. As paredes estão cheias de cheiros, cheiros de sangue, sangue humano, e suor. Será que estou ficando louco? Pego um táxi. O taxista veio conversando comigo. Veio falando sozinho. Falava demais. Geralmente quem fala demais fala só. Ele fedia. O cheiro dele não era muito diferente do ônibus. Parecia também o cheiro de muitas pessoas reunidas, só que com lavanda. Aquela lavanda de banheiro público. Talvez nem isso, não tem definição. O cheiro de quem fica perto demais das pessoas é o mais insuportável. O cheiro de todos é o pior.  O táxi dele é insuportável! Não vou tampar meu nariz, ele estranharia. Não quero que ele chegue perto de mim.  Desço na porta de minha casa. Pego no dinheiro, fede a todos, ao pior cheiro. Entrego minha carteira por inteiro e entro correndo em casa. Tranco-me.
Aqui dentro está tudo normal, a não ser pelo cheiro de minha roupa. Em casa fico nu.
Deito-me na cama. A cama cheira bem, cheiro de amaciante.
Acordo. Estou todo suado, inclusive minha cama. Levanto de vez. A cama fede a minha pele. Minha pele fede. Entro no banho. Ensaboo-me durante 40 minutos. Passo o sabão e tiro. Cheiro-me. Passo e tiro. Cheiro-me. Tiro o sabão e passo. Passo a mão pelo escroto e pelas bandas, cheiro. Tiro e passo o sabão. Degusto-me. Enfim, fico bem. Cheiro de sabão pela pele. Alívio. Jogo a toalha no lixo. Passo a mão em meu cabelo e cheiro, minha mão fica com alguns cabelos, poucos. E fede, como sempre, fede. Totalmente fedida. Parece pentelho suado. Vou até o quarto onde guardo quinquilharias. Encontro uma antiga máquina de cortar cabelos. Raspo todos os cabelos do corpo, inclusive os do cu e as sobrancelhas. Entro na internet e procuro sites que vendam madeiras e aço. Compro barras de aço e pedaços grandes de madeira, parecidos com porta, pago tudo no cartão.
No outro dia, elas chegam, eles deixam em minha garagem. Paguei um adicional para chegar em até 24 horas. Isolo um quarto com o aço. “Foi complicado, e suei muito, mas tomava banho a cada cinco minutos”. Jogo tudo que não presta daqui de casa dentro do quarto. Lençóis podres com meu cheiro. TV cheia de marcas de mãos que não saem nem com pano molhado. O computador cheio de marcas de mão e espermas grudentos, esse não jogo. Fogão, sim, geladeira, não, preciso de água gelada. Jogo a cama e também o colchão, vou limpar o chão e dormir nele. Jogo celular cheio de minha saliva impregnado do uso. Todas as minhas roupas. Percebo que aqui dentro não preciso delas. Micro-ondas vai junto... Tudo inútil e com cheiro de casa. Pronto, toquei fogo, agora estou só. Eu e as paredes e mais nenhuma mentira perto de mim, nenhuma mentira com cheiro de utilidade. Nenhum bafo, nenhum som de voz. Isso fede também, o som de voz. Deito no canto da sala e durmo. Quando acordo, as paredes estão todas amareladas, parecem velhas. Sinto um leve cheiro de vômito, sinto uma fome tremenda. Vou até a geladeira, pego uma maçã. Ela cheira bem. Não como. Fico cheirando-a. Vou até o computador, ele fede, mas daqui posso conseguir muitas coisas, inclusive comida. Entro no site onde vende aço e madeira. Vejo um link: ‘Caixões de aço cristalizado. Impenetráveis. Perfeito para descansar em paz’. Acesso. São caixões feitos sob medida. Depois de fechado, não abre mais, só se for aberto por dentro. Mas, para testar, você pode se fechar por dentro e ver que realmente tem espaço para o futuro dono morto e seus pertences. Comprei no cartão.
Chegou depois de dois dias. Dois dias loucos de cheiro de esgoto aqui em casa. Esgoto, cu, lodo, merda, vômito, pele, pentelho, olho, mão, suor, saliva, voz, bafo, perna, vizinhos, sons, paredes, ralo, órgãos, risos, lembranças, responsabilidades, vagina, esperma, sangue, medo, ou seja, dois dias enlouquecedores. Por duas vezes pensei em me matar.
Chegou o caixão, na garagem. Fui até lá. Muito pesado. Vai ser aqui mesmo que entrarei. Fui até a cozinha, peguei a maçã. Talvez tenha sido o cheiro dela, conservado pela geladeira, que me salvou, pra pelo menos eu adormecer sem sentir cheiros. Entrei. Depois que eu adormecer, não acordarei mais. Penso. Não tenho coragem de comer a maçã, ela cheira muito bem. Vou morrer de fome e de sede, mas não como a maçã. E também não beberei água. Ela tem cheiro de verme e fezes. Aqui dentro, não preciso de nada. Só quero fechar os olhos e, cheirando a minha maçã, esperar. O homem é uma merda para o mundo. Por isso o mau cheiro. Essa ideia formula-se como uma resposta. 
Depois de alguns minutos dentro do caixão, não sei quantos, se poucos ou se muitos, sinto o cheiro de morte, cheiro podre, decomposto, putrefato, corrupto. De liberdade.
Tem uma entrada para o ar. Mas deixo fechado. Vou dormir. A escuridão é uma mãe nesses tempos de falsas realidades. Aqui dentro é tudo mais real. É tudo mais ... vida. Apesar do cheiro já me incomodar. Estou quase dormindo, meus olhos estão cochilando. O que me deixa feliz é saber que não vou sentir o cheiro de meu corpo apodrecendo. Alguém sentirá meu cheiro apodrecendo e entenderá porque apodrecer é ter cheiro de vitória, para o próximo.
Um som bem longe. TCHIBUMMMMM!
Parece que algo caiu na água. Um clarão...
Acordo. Estou deitado. Alguma coisa derrubou meu caixão. Estou com fome. Muita fome. Preciso comer. Não consigo sair do caixão. Desisto, durmo.
Acordo! Não sei quanto tempo depois, abro por reflexo a entrada de ar, não vejo minha casa. Vejo um clarão insuportável. Não sinto cheiro de nada.
Agora, sinto cheiro de fumaça. Abro a porta do caixão. Nele, fico em pé. Tudo está destruído. Não vejo casas, árvores. Tudo, tudo destruído. Olho para o chão, dentro do caixão, uma maçã. Pego e a cheiro. Como-a.
O cheiro podre acabou. Saio caminhando, acho mais algumas frutas debaixo dos destroços. Como-as. Feliz, sinto que não tem mais o cheiro. Estou completo. Enfim, vivo!
Depois de caminhar algumas horas, vejo um caixão de aço cristalizado. Será que é o meu? Não é. Esse está fechado. Ele se abre. Dele, sai uma mulher. Ela me vê e sorri. 


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Conto publicado em 2010 no livro 'Imagine alguém te olhando do escuro'

Leia o livro completo clicando no link abaixo: