sexta-feira, 15 de maio de 2015

Leia o conto - O cheiro do mundo



O cheiro do mundo

O meu carro deu um problema que não entendo bem. Deixei mais cedo no mecânico. Agora, no ônibus, sinto-me incomodado com a quantidade de gente ao meu redor. E ainda tem um cidadão do meu lado que fede. Como a pessoa consegue acordar e já começar a feder dessa forma? Será se ele não tomou banho? Ele está arrumado e com gel no cabelo, uma farda do trabalho. Ele fede mesmo!
Chego ao trabalho. Estou com o cheiro do cara fedorento do ônibus. Em mim ficou o cheiro o dia inteiro. No fim do expediente, paguei um táxi até a oficina. Estava fechada.
À noite, tomo três banhos e o cheiro do filho da puta não sai de mim. Tomo um remédio e durmo. De manhã, acordo atrasado. Não ouvi o despertador. Acordo suado, minha cama está toda molhada de suor. É o calor. Como estou atrasado, é melhor eu pegar o carro só mais tarde. Estou no ponto. O cara fedorento também. Afasto-me dele. Perco o ônibus, mas ele entra. Atraso-me mais 15 minutos, mas não sinto novamente aquele cheiro. Quando passa outro ônibus, entro. Como sempre, cheio, e cheiros horríveis. Hoje sinto mais quatro pessoas, todas ao meu redor, fedorentas. Pessoas são cheiros, orifícios e desejos. Por isso tanto fedor, afinal, liberamos variados odores. Podres odores. Percebo isso agora. Cheiro minhas mãos, está com o cheiro do ferro que seguro para me equilibrar, minha mão cheira a suor de outras mãos. Talvez cheiros de até outras coisas. Tento me equilibrar sem segurar nos ferros do ônibus, não consigo. Equilibro-me nas costas de uma das pessoas podres. Equilibro-me numa mulher. Ela se incomoda. Talvez não goste do meu cheiro. Eu tiro minha mão de seu ombro. O motorista breca de vez. Eu caio empurrando as pessoas. Levanto-me pegando no ferro. Largo de vez, ele fede. Desequilibro-me e encosto meu rosto no cabelo de um cara que estava em minha frente. Foi castigo. Cheirava podre também. Aceito e vou segurando as barras de ferro. Uma pessoa levanta, vou sentar. Na cadeira tem umas manchas verdes bem fraquinhas. Não deve ser nada, sento-me. Olho minhas mãos, círculos amarelados mexem-se. Que porra é essa? Só posso estar doidão? Que remédio foi que tomei ontem? Esfrego uma mão na outra, as cores amareladas espalham-se. Esfrego minhas mãos na calça, olhando para o chão do ônibus, cheiro-as. As minhas mãos lembram cheiro de carniça, cheiro de gente morta. Você já sentiu esse cheiro? Olho o chão do ônibus, tem manchas verdes movendo-se e indo para o acento. Levanto-me de vez, as pessoas olham-me, a cadeira está cheia de bolas verdes. O cheiro delas é de esgoto enlodado. Minhas mãos estão podres. As pessoas fedem a lodo de suor.
Meu ponto!
Empurro algumas pessoas e desço. Ainda estou sujo na calça com as bolas verdes, e nas mãos com as bolas amarelas. A rua fede à merda e vômito. Fede a rato morto. Fede à cachaça. A rua fede. Não aguento. Entro no trabalho, o porteiro tinha cheiro de cu. No elevador, graças a Deus, só!
Uma sombra negra aparece ao meu lado, não sei como, ela sorri pra mim. É um humano disfarçado de sombra. Só pode. É um homem, um porco homem, ou o cheiro do filho da puta do cara do ônibus que começou a feder em mim e não saiu mais? É, sim, por causa desse filho da puta que está acontecendo isso.
Volto a mim. Meu colega de trabalho está do meu lado.
_José?
_Opa! Bom dia! – ele fede.
_Choveu, foi? Você está todo molhado.
_Deve ser o fedor que me contamina. Me deixando de mau humor. Me fazendo suar feito porco!
_Como?
Ele ouviu, mas tem medo de mim, é um bom demagogo.
O meu andar. Saio do elevador. Ele não fala comigo. O andar fede a papel, dinheiro, cocaína, bunda amassada, pica, absorvente, sangue, cuspe, KY e cola. Fico tonto. Entro nas escadas e desço. As paredes estão cheias de cheiros, cheiros de sangue, sangue humano, e suor. Será que estou ficando louco? Pego um táxi. O taxista veio conversando comigo. Veio falando sozinho. Falava demais. Geralmente quem fala demais fala só. Ele fedia. O cheiro dele não era muito diferente do ônibus. Parecia também o cheiro de muitas pessoas reunidas, só que com lavanda. Aquela lavanda de banheiro público. Talvez nem isso, não tem definição. O cheiro de quem fica perto demais das pessoas é o mais insuportável. O cheiro de todos é o pior.  O táxi dele é insuportável! Não vou tampar meu nariz, ele estranharia. Não quero que ele chegue perto de mim.  Desço na porta de minha casa. Pego no dinheiro, fede a todos, ao pior cheiro. Entrego minha carteira por inteiro e entro correndo em casa. Tranco-me.
Aqui dentro está tudo normal, a não ser pelo cheiro de minha roupa. Em casa fico nu.
Deito-me na cama. A cama cheira bem, cheiro de amaciante.
Acordo. Estou todo suado, inclusive minha cama. Levanto de vez. A cama fede a minha pele. Minha pele fede. Entro no banho. Ensaboo-me durante 40 minutos. Passo o sabão e tiro. Cheiro-me. Passo e tiro. Cheiro-me. Tiro o sabão e passo. Passo a mão pelo escroto e pelas bandas, cheiro. Tiro e passo o sabão. Degusto-me. Enfim, fico bem. Cheiro de sabão pela pele. Alívio. Jogo a toalha no lixo. Passo a mão em meu cabelo e cheiro, minha mão fica com alguns cabelos, poucos. E fede, como sempre, fede. Totalmente fedida. Parece pentelho suado. Vou até o quarto onde guardo quinquilharias. Encontro uma antiga máquina de cortar cabelos. Raspo todos os cabelos do corpo, inclusive os do cu e as sobrancelhas. Entro na internet e procuro sites que vendam madeiras e aço. Compro barras de aço e pedaços grandes de madeira, parecidos com porta, pago tudo no cartão.
No outro dia, elas chegam, eles deixam em minha garagem. Paguei um adicional para chegar em até 24 horas. Isolo um quarto com o aço. “Foi complicado, e suei muito, mas tomava banho a cada cinco minutos”. Jogo tudo que não presta daqui de casa dentro do quarto. Lençóis podres com meu cheiro. TV cheia de marcas de mãos que não saem nem com pano molhado. O computador cheio de marcas de mão e espermas grudentos, esse não jogo. Fogão, sim, geladeira, não, preciso de água gelada. Jogo a cama e também o colchão, vou limpar o chão e dormir nele. Jogo celular cheio de minha saliva impregnado do uso. Todas as minhas roupas. Percebo que aqui dentro não preciso delas. Micro-ondas vai junto... Tudo inútil e com cheiro de casa. Pronto, toquei fogo, agora estou só. Eu e as paredes e mais nenhuma mentira perto de mim, nenhuma mentira com cheiro de utilidade. Nenhum bafo, nenhum som de voz. Isso fede também, o som de voz. Deito no canto da sala e durmo. Quando acordo, as paredes estão todas amareladas, parecem velhas. Sinto um leve cheiro de vômito, sinto uma fome tremenda. Vou até a geladeira, pego uma maçã. Ela cheira bem. Não como. Fico cheirando-a. Vou até o computador, ele fede, mas daqui posso conseguir muitas coisas, inclusive comida. Entro no site onde vende aço e madeira. Vejo um link: ‘Caixões de aço cristalizado. Impenetráveis. Perfeito para descansar em paz’. Acesso. São caixões feitos sob medida. Depois de fechado, não abre mais, só se for aberto por dentro. Mas, para testar, você pode se fechar por dentro e ver que realmente tem espaço para o futuro dono morto e seus pertences. Comprei no cartão.
Chegou depois de dois dias. Dois dias loucos de cheiro de esgoto aqui em casa. Esgoto, cu, lodo, merda, vômito, pele, pentelho, olho, mão, suor, saliva, voz, bafo, perna, vizinhos, sons, paredes, ralo, órgãos, risos, lembranças, responsabilidades, vagina, esperma, sangue, medo, ou seja, dois dias enlouquecedores. Por duas vezes pensei em me matar.
Chegou o caixão, na garagem. Fui até lá. Muito pesado. Vai ser aqui mesmo que entrarei. Fui até a cozinha, peguei a maçã. Talvez tenha sido o cheiro dela, conservado pela geladeira, que me salvou, pra pelo menos eu adormecer sem sentir cheiros. Entrei. Depois que eu adormecer, não acordarei mais. Penso. Não tenho coragem de comer a maçã, ela cheira muito bem. Vou morrer de fome e de sede, mas não como a maçã. E também não beberei água. Ela tem cheiro de verme e fezes. Aqui dentro, não preciso de nada. Só quero fechar os olhos e, cheirando a minha maçã, esperar. O homem é uma merda para o mundo. Por isso o mau cheiro. Essa ideia formula-se como uma resposta. 
Depois de alguns minutos dentro do caixão, não sei quantos, se poucos ou se muitos, sinto o cheiro de morte, cheiro podre, decomposto, putrefato, corrupto. De liberdade.
Tem uma entrada para o ar. Mas deixo fechado. Vou dormir. A escuridão é uma mãe nesses tempos de falsas realidades. Aqui dentro é tudo mais real. É tudo mais ... vida. Apesar do cheiro já me incomodar. Estou quase dormindo, meus olhos estão cochilando. O que me deixa feliz é saber que não vou sentir o cheiro de meu corpo apodrecendo. Alguém sentirá meu cheiro apodrecendo e entenderá porque apodrecer é ter cheiro de vitória, para o próximo.
Um som bem longe. TCHIBUMMMMM!
Parece que algo caiu na água. Um clarão...
Acordo. Estou deitado. Alguma coisa derrubou meu caixão. Estou com fome. Muita fome. Preciso comer. Não consigo sair do caixão. Desisto, durmo.
Acordo! Não sei quanto tempo depois, abro por reflexo a entrada de ar, não vejo minha casa. Vejo um clarão insuportável. Não sinto cheiro de nada.
Agora, sinto cheiro de fumaça. Abro a porta do caixão. Nele, fico em pé. Tudo está destruído. Não vejo casas, árvores. Tudo, tudo destruído. Olho para o chão, dentro do caixão, uma maçã. Pego e a cheiro. Como-a.
O cheiro podre acabou. Saio caminhando, acho mais algumas frutas debaixo dos destroços. Como-as. Feliz, sinto que não tem mais o cheiro. Estou completo. Enfim, vivo!
Depois de caminhar algumas horas, vejo um caixão de aço cristalizado. Será que é o meu? Não é. Esse está fechado. Ele se abre. Dele, sai uma mulher. Ela me vê e sorri. 


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Conto publicado em 2010 no livro 'Imagine alguém te olhando do escuro'

Leia o livro completo clicando no link abaixo:


 

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