quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Lobo - conto de horror do livro 'afetos, abismos & engenharias'



Lobo

Era uma vez, em uma rua onde as casas eram mais vistosas, frondosas e com muros pintados coloridos e muito bem projetados, protegidos por sensores eletrônicos, luzes iônicas e, algumas das casas, até guarita, todas belas vistas...
Henrique caminhava em marcha lenta. Sem sacrifício e pensativo, ao ponto que este narrador não saberia descrever seus pensamentos. As luzes amareladas e brilhantes dos postes, todas funcionando, tilintavam um início de madrugada tranquilo. O asfalto liso e imposto sob a ordem e progresso, todo sinalizado, sinalizava que o poder público ali abençoava e era uma mãe e pai. Na rua, pouco mais de três casas adiante, depois da primeira do quarteirão, um cachorro raivoso e de guarda vem correndo pelo quintal de sua “residência” e joga-se no portão, com latidos ameaçadores. Henrique assustou-se, mas, menos de três segundos depois, sorriu e continuou sua caminhada para casa. O cachorro continuou latindo e rosnando, acompanhado de todos os outros cães que ouviram o latido nervoso do primeiro latidor. Henrique sentia muito sono, seu dia tinha sido pesado demais para se importar com a neurose de donos refletidos em cães.
      Antes de terminar o quarteirão, com os ouvidos ainda sob a sinfonia de latidos e com sua mente em prantos de cansaço, desejando desesperadamente a sua cama, Henrique ouviu um cão que não latia por trás de um dos pomposos muros da rua, com certos quatro metros de altura e alaranjado, com cercas elétricas e com uma luz que reluzia de dentro para fora, sumindo ao tapete solar da madrugada. Ele ouviu um cão que chorava de dor, miava de medo, e parecia correr desesperado pelo pátio da casa de muro alaranjado que estava.
O cão corria, rasgava as unhas e gemia, chorava de dor. Henrique, curioso, com seu coração penoso, encostou sua orelha sobre os portões pretos, antes não descritos, quando dito sobre a casa neste conto fatídico. Henrique, estando agora a vinte centímetros da casa, põe seus ouvidos a trabalhar. Uma respiração ofegante acompanhada de um gemer rangente e uma regência de dentes inquietantes ele ouvia.
Inicialmente Henrique pensou ser outro cão que estava atacando o cão-vítima, machucando-o e açoitando o pobre que expelia grunhidos de dor. A sinfonia dos cães na rua, cuidadosos com as casas de seus donos e entes queridos, não permitiu esse desmembramento de sua dúvida. Mas, curioso como um homem comum, Henrique encostou ainda mais seu ouvido no portão. Dessa vez, sentiu na pele sensível de sua orelha o frio gélido da madrugada encruado no ferro do portão.
Depois de alguns segundos concentrando-se no que ouvia: só o cachorro chorava e corria pelo espaço onde estava. Pela forma que corre e chora, sente muito medo. Ele interpretou. É impossível imaginar o quanto o coração do cão acelerava. Mais alguns segundos ouvindo colado com seu ouvido no portão alheio, e nada de entender o porquê do sofrimento do cão. E nada de entender o que era aquele gemer e ranger de dentes que lembrava outro cão, assassino e sádico atrás virilmente da vítima.
_Seu cachorro desgraçado!
Henrique ouviu uma voz proferindo a frase de forma varonil e, inquietamente, afastou-se do portão e seguiu seu caminho. Pensou sobre o fato até chegar à sua casa. Depois tomando banho e depois na cama, como aquela voz saiu cheia de raiva da boca de seja lá quem fosse que machucava o cão daquele jeito. A voz saiu entre os dentes, cheia de ódio. A voz saiu cheia de prazer orquestrada pela língua. A voz saiu na mistura do ranger e respiração ofegante como um grito mudo da garganta. Mas que se fez ouvir. A voz queria machucar aquele pobre cãozinho. A voz.
Tanto vazia. Henrique dormia. Mas, ainda assim, ele sonhou com a voz e sua vontade, nada maleável, de só proferir maldade.
      No outro dia, às oito da manhã, seu despertador toca. Era a hora de cuidar de sua casa. Henrique morava sozinho e já tinha 44 anos. Uma vez ficou noivo, mas foi trocado dois dias antes de seu casamento pelo vizinho de sua noiva. Um homem quatro anos mais novo que ele. Esse fato já tinha vinte anos. Depois desse acontecimento e da morte de seus pais, Henrique, que já era filho único, ficou sozinho no mundo.
      Pela manhã era a casa que lhe interessava. Às onze, depois de lavar o banheiro de seu quarto e lavar a sua sala, que há tempos não recebia visitas, a não ser de cobradores que o visitavam ou vendedores de consórcio funerário, ele começava a preparar seu almoço e sua quentinha para o trabalho. No qual só entraria às quatro da tarde. Depois de uma da tarde, quando já tinha almoçado e descansado como todo bom trabalhador merece, assistia ao Jornal na TV e entrava na internet. Conversava com alguns amigos e amigas virtuais. Participava de ações online que faziam a diferença para todos e para o mundo. Como por exemplo: entrar em site que reúne assinaturas virtuais para a preservação da Amazônia.
A cada assinatura digital, você colabora com o instituto Viva Natureza e ainda é o responsável pelo plantio de uma muda nos locais de desmatamento.
Henrique entrava também em outros sites que o levavam a ter orgulho de si mesmo. Entre os sites, um era sobre a proteção dos animais. Nesse dia, nesse site, ele viu um vídeo de um dono que machucava seu cão com esporas de cavalo e cintos. Já eram pelo menos três horas da tarde. Era a hora de fazer seu lanche e ir para o trabalho. Mas o vídeo fez com que Henrique, que não tinha pensado ainda sobre o acontecido de ontem, lembrasse fielmente todos os gemidos e pensamentos insanos sobre como aquele cachorro estava apanhando e por que apanhava daquele jeito da “voz”. O vídeo, que ele há pouco tinha visto na internet, fixou em sua mente como se tivesse sido gravado naquele momento em que estava com sua orelha grudada no portão da casa onde o cachorro era massacrado. Os gemidos e as corridas apavoradas pareciam ser muito iguais. Pensou, enquanto preparava seu lanche que comeria e o que levaria para o trabalho.
      No banheiro, Henrique também não parou de pensar no massacre que presenciou, mesmo que só ouvindo de xereta por “trás da porta”.
_Esse vídeo me fez ficar impressionado. Merda! – Disse a si, em voz baixa.
No banheiro, não conseguiu concentrar-se em sua higiene diária. A qual ele mergulhava profundamente para ficar asseado na intenção da secretária de seu chefe. Ela e ele nunca haviam conversado, mas Henrique voava em sua imaginação com o tom da voz da secretária falando para ele: Boa tarde. Todos os dias ela cumprimentava-o quando ele chegava à empresa. A portaria era ao lado do escritório do chefe, era lá que ela o cumprimentava.
      Depois do banho, enquanto comia seu lanche, sentiu náuseas imaginando o massacre que aquele pobre cão foi submetido na noite anterior. Durante o caminho ao trabalho, também não parou de pensar no cachorro: qual seu nome? Por que o dono foi tão violento? Como ele realmente apanhou? Etc.
Bem perto do trabalho, avistou a rua que “presenciou” o episódio que não saía de sua cabeça. Mesmo contrariando parte da vontade de seu corpo, conseguiu seguir outro caminho até chegar ao quarteirão onde ficava o seu trabalho. Henrique preferiu não ver a casa de dia e seguiu outro caminho. Ele não queria mais problemas.
      No trabalho, depois do belo “Boa tarde” de Evanir, a secretária de seu patrão, chegou ao setor onde obrava. Pegou sua farda, que ficava num armário com seu nome e sobrenome, foi ao banheiro, vestiu a farda e foi à labuta.
      Henrique não conseguiu crescer na vida como seus pais haviam sonhado. Talvez Deus tenha traçado esse destino para mim. Conformava-se, raciocinando, enquanto fazia seu trabalho na empresa. Ele pegava das 16 horas à zero hora. Comia duas vezes: uma quentinha que preparou no almoço e um lanche que preparou à tarde. Não trocava muitas palavras com ninguém. Nesse dia, em especial, não trocou palavras nem com seu amigo Júlio. Ambos com nomes de reis e imperadores. Henrique fez seu trabalho nesse dia como um robô: suas mãos e seu corpo guiavam-no nesse fazer costumeiro, mas sua cabeça não esquecia o “que poderia ter acontecido com o cachorro”.
      No fim desse dia, de madrugada, Henrique seguiu seu caminho. E, como na tarde, evitou passar pela rua onde estava a casa onde ouviu o massacre. Mas, no meio do caminho, mais perto de sua casa do que da casa que seu pensamento não largava, não resistiu a todos os desejos e vozes que imploravam para voltar à rua e ouvir o que estava acontecendo realmente com o cachorro vítima da voz.
Ele voltou.
Na rua, muitos cachorros latiam para ele. E, de frente à casa, orelha no ferro do portão, ferro do portão na orelha, ele ouviu os mesmos barulhos de ranger de dentes e gemer com ódio e da pobre vítima, o cão sofredor, correndo de seu agressor. Tentou olhar pelas frestas do portão, mas nada dava para ver. Dentro daquela casa, existia outro tipo de escuridão. Henrique sentiu uma dor no peito incalculável e chorou. Chorou de forma muda e não teve coragem para intervir, batendo na casa daquele cidadão. Quem é o cão que faria isso com um cachorro? Homens são cães, cachorros são humanos? – perguntava-se em pensamentos.
No peito de Henrique, um buraco negro de pena, e, em sua mente, muitos pensamentos de como é que aquilo acontecia e ninguém fazia nada. Nenhum vizinho tomava providência.
_É. Nenhum vizinho faz nada – disse a si, com a voz baixa e cabisbaixo, já distante cinco metros do portão e usando de sua força interior para ir contra sua provável coragem que poderia interferir naquilo. Mas, se nenhum vizinho intervém, por que Henrique seria o homem para intervir? Nome de rei, atitude de homem?
      Henrique passou o outro dia raciocinando e pensando sobre o que ele poderia fazer para ajudar o cão-vítima da situação.
Primeiro pensou em fazer uma denúncia à sociedade protetora dos animais. E fez. Mas, duas outras noites, ele passou pela rua e o show de horror continuava. Quem tem dinheiro pode mais? Pensava. Depois, tentou conversar com seu amigo Júlio, mas dele ouviu que “meu coração agora só tem uma causa que se chama Vanda”. Pensou em esquecer, mudar de caminho e fazer o certo para não ficar no incerto. Ele não podia ter mais problemas nessa vida. E, duas semanas mais tarde, insistentemente ainda procurando solução para o pobre cão, sem conseguir desviar o caminho de sua ida para casa e sem conseguir desviar seus pensamentos, que o faziam sofrer e o fizeram parar de comer e começar a dar bobeira no trabalho, Henrique teve a coragem e bateu na casa do vizinho que tinha a menor casa da rua.
_Talvez este seja mais humilde e não tenha dinheiro como sentido para tudo – falava sozinho, enquanto tocava a companhia às três da tarde.
Um senhor, já de idade, veio atender.
_Sim, amigo, não quero enciclopédias.
_Não vendo enciclopédias. Acho que ninguém mais vende enciclopédias.
_O que você quer, então?
_Gostaria de falar de um assunto que é de seu interesse e das pessoas de bem.
_Fale mais alto e pra fora. Parece uma mulher recolhida quando fala.
_Desculpe, senhor.
Henrique afastou-se do portão e saiu caminhando. O senhor fez cara de quem não entendeu nada, falou algum palavrão e entrou para dentro da casa. Henrique já seguia de cabeça baixa, como uma sina, para seu trabalho, quando outro vizinho o chamou.
_Ei, amigo, camarada!
_Comigo?
_Sim. Venha cá.
_Diga – disse Henrique, parado em frente à casa do homem que havia chamado por ele.
_O que você queria com aquele homem?
_Estava tentando procurar alguém que me ajudasse a combater um mal que tem nessa rua e me aflige todos os dias, desde a primeira vez que ouvi.
_Mal? Como assim?
_Um dos seus vizinhos... – antes que Henrique terminasse a fala, foi interrompido.
_Camarada, aqui ninguém se mete na vida de ninguém. Para isso que servem os muros. Boa tarde – disse, grosseiramente, batendo a porta.
      E, em mais uns dias, Henrique penou com a sua imaginação e todas as noites ouvindo o massacre do cachorro pelo portão da casa. Ele esforçava-se para não passar pela rua do cachorro torturado. Mas toda noite passava e ouvia. Henrique não sabia o que fazer. Praticamente não comia. Esqueceu o prazer do “Boa tarde” de sua amada platônica do trabalho. Pensava em demitir-se e mudar de cidade. Quem sabe, de país. A dor da falta de coragem é maior que a dor da coragem. E disso, nele criou-se a coragem.
      Naquela madrugada, ele ouviu desesperado todo o sofrimento do cachorro. Mas, perto das quatro da manhã, parou. Era o momento que ele teria para poder fazer alguma coisa pelo seu “amigo” sofrido. Enquanto a casa já estava há pelo menos 30 minutos sem os “gritos” de dor do cachorro, Henrique preparou-se com uma corda que havia comprado na própria loja em que trabalhava. Em uma dessas sessões de terror que Henrique “presenciou”, ele percebeu que as cercas elétricas daquela casa não eram ligadas, só serviam para intimidar possíveis invasores e ladrões. Então ele jogou a sua corda. Depois de laçada e segura, escalou o muro como se executasse um milagre divino. Cheio de orgulho de si e mais homem do que nunca, viu seu companheiro todo ferido, lambendo suas feridas no canto mais claro da casa. O cachorro apenas olhou para o invasor da casa. Henrique não perdeu tempo e desceu pelo muro com a corda para dentro da casa. O cachorro, mesmo depois de apanhar tanto, era fiel ao seu lar e ameaçou o invasor, mas Henrique, perspicaz, levou para seu amigo um pedaço de carne e logo o conquistou.
_Hoje, te livrarei de seu sofrimento, amigo – em pé, de frente ao cão esfomeado, dilacerando a carne, e todo machucado, ele disse, com as suas duas mãos sobre sua cintura.
      A primeira providência do herói do canino foi cuidar das feridas do cachorro. E, com calma, fazer alguns carinhos no bicho, fazendo-o dormir. Alguns minutos cochilando o sono dos justos, o cachorro foi acordado por Henrique.
_Nego, agora é a hora de eu te livrar disso tudo – Henrique falou, cheio de orgulho em seus olhos e mostrando um tom nobre em sua atitude.
De sua mochila, Henrique pegou outra carne para o dog. Que, por sinal, pulou de alegria quase falando prosaicamente “obrigado, amigo”. Henrique viu nos olhos do animal o que ele dizia. E, orgulhoso, seguiu seu plano até o fim.
Ela puxou de sua bolsa uma seringa cheia, com um líquido branco, que era veneno para rato. Ele aplicou a seringa na carne antes de dar a mesma ao animal. E, ainda antes, deu beijos e afagos no bicho, dizendo ao seu ouvido: desculpa, amigo. Não tenho coragem de fazer isso contra seu dono, mas ainda nos veremos e você vai latir de agradecimentos para mim – disse, largando o cachorro, cheio de lágrimas em seus olhos, deixando o cão ir até onde estava a carne.
Depois de feito o ato de salvação, Henrique pegou a coleira do amigo como lembrança e subiu pela corda.
Pela rua, quase amanhecendo, Henrique seguiu brioso de si, sabendo que fez a coisa certa e libertou o cachorro do que chamamos de vida e que para ele era lástima, expiação.
Para mim, isso é uma prisão. Nos céus receberei em troca o que fiz por aqui. Dê a outra face à mão que te agride. Agora que está desencarnado, e evoluído, deve estar se perguntando por que não te levei pela corda para a minha casa. Amigo, você comigo só me traria mais desgraças e problemas com meus vizinhos. Moro numa casa pequena e mal ganho para me alimentar. Sei que fiz a coisa certa e peço ao senhor Jesus Cristo que te receba bem. Jesus é caridoso com todos os animais e todos os homens. Eu sou sua ovelha...
Henrique seguia para casa, pensando, orando.
      À noite, nesse mesmo dia, depois de sair do trabalho, vinha livre de remorso, feliz com sua missão cumprida, pela rua onde ouvia todas as noites o sofrimento de seu companheiro já falecido. Enquanto todos os cachorros latiam por causa da presença de seus passos cambaleantes, saltitantes, na rua, ele não ouvia mais nada de dor, nem de pavor saindo pelos muros da casa de muros alaranjados. Seu riso refez-se em uma alegoria carnavalesca e foi fluindo amor para sua casa, mesmo com medo de ser descoberto.
_Eu não serei descoberto – falou para si, quase dobrando o quarteirão, quando ouviu um grito estridente e cheio de dor:
_LOBO!LOOOOOOBOOOOOO!
Henrique preferiu seguir, mas o grito ia tão forte e tão certeiro em sua direção, como uma vítima cretina que lhe oferece culpa e nada mais, que não passou despercebido. A voz tinha uma dor descomunal. Tinha desespero e, quanto mais o som da voz chegava perto dele, por dentro surgia uma vontade de voltar e ver de onde vinha aquele gritante clamor cheio de medo, pavor e gritos desesperados por Lobo.
      Era na casa em que ele tinha livrado o cachorro das dores diárias. Era talvez o dono da voz que gemia de raiva, prazer e sadismo enquanto machucava seu próprio cachorro, o Lobo. Você deveria ter pensado duas vezes antes de machucar seu cão daquela forma. Pensou Henrique, encostado no portão da casa. Ele ficou ouvindo o antigo dono gritar Lobo por pelo menos duas horas.
Henrique queria sair dali, queria sorrir da dor do dono malfeitor, mas uma força maior segurou-o. As dores do homem e seu arrependimento? O que fazia aquele homem gritar comovia-o profundamente. Afinal, ele o machucava, mas o amava? Pensava Henrique. Apesar do sentimento de vitória que carregava em seu coração sobre a situação, ele ali ficou, até que os gritos cessaram. Henrique, enfim, conseguiu ir para casa descansar.
      Os dias seguintes foram ainda piores do que os dias em que sofreu com as dores noturnas do seu amigo cachorro. Henrique parou de vez de comer e parou de ir ao trabalho. Trancava-se em casa, mas não adiantava. Ou ele abria a sua porta e seguia para frente da casa onde o homem gritava toda madrugada pelo seu cachorro Lobo, ou, se intencionalmente tivesse jogado fora a chave da porta de sua casa, como fez uma vez, arrombava a mesma para ir até a rua ouvir o homem gritar de dor e de saudade pelo seu cão assassinado por Henrique. Assassinado? Não. Brigavam as vozes de seus pensamentos.
      O que fazer? Como sair dessa situação? Em suas orações, Jesus não trazia as respostas. Em seu coração, o medo e o desespero comandavam cegando-o para as respostas. Henrique precisava de uma saída para esquecer essa nova fixação em sua vida. Ela viria? Mas quando?
Já após quatro meses de sofrimento e lástima, de culpa, ouvindo todas as madrugadas o dono do cão gritar de saudade pela sua antiga cria, Henrique entrou em desespero e começou a quebrar os móveis de sua casa. A esmurrar as paredes. A arranhar com a unha o chão, a quebrar os quadros que eram de seus pais. Ele quebrou com as mãos os copos de vidro de sua casa. Também gritava insanamente querendo esquecer o porquê de tanta culpa e tanta fixação pelo grito do homem malfeitor do cão. De seu pensamento, não saía a vontade e a obrigação, sim, obrigação, de ir até a casa daquele cidadão resolver a situação da falta que ele sentia do seu Lobo. E, em uma dessas raivas que o acometiam durante as suas tardes de desempregado, pois de madrugada ele ia ouvir os gritos de saudade do dono do cão, Henrique levantou o colchão de sua cama, a fim de jogá-lo pela janela do quarto, e viu esquecida no chão a coleira de seu amigo cão, o Lobo, tanto gritado por seu saudoso-algoz dono.
      Depois de vinte minutos olhando para aquela coleira, andando de um lado para o outro em seu quarto, ele concluiu.
De madrugada, Henrique foi caminhando até a casa onde aconteceram os fatos desta história. Henrique, de frente à mesma, tocou a companhia da casa. O homem que gritava parou repentinamente. Depois de alguns minutos, com tudo em silêncio, Henrique tocou a campainha de novo, desta vez com mais ênfase, como se a coragem estivesse na ponta de seus dedos. Ele ouviu passos. O dono do cachorro falecido e da casa abriu a porta. Ele estava com o rosto vermelho de tanto chorar.
_Boa noite. Está muito tarde. Mas, me diga, em que posso ajudá-lo?
Henrique nada disse, mostrou a coleira do Lobo para seu dono e começou a chorar. O homem, dono da casa, convidou-o para entrar.
_Desculpe, amigo. Não aguento mais sentir a sua dor – já dentro da casa, disse Henrique, colocando a coleira do Lobo em seu pescoço, abaixando-se, completando seu coração de coragem e ficando de quatro como um cão humanizado.
Sem mais palavras, Henrique foi engatinhando para o local onde tinha visto o cachorro quando desceu escalando o muro.
O dono do Lobo olhou calado a situação. Depois foi em passos curtos e trancou a porta de casa, dando duas voltas na chave. Sorriu como se agradecesse a Deus pelo presente e, como antes fazia, começou a gemer, rangendo os dentes de raiva. Ele tirou seu cinto de couro e, em seguida, enrolou-o em seu punho esquerdo, o mesmo lado que fica seu coração, cheio de saudade do seu amado Lobo.  



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