domingo, 27 de julho de 2014

De cores indefinidas - da obra "afetos, abismos & engenharias"

De cores indefinidas

Com as mãos em ação, enluvadas, com nojo aparente em sua expressão bucal e com seu nariz gritando silenciosamente por socorro, ele limpava, pela primeira vez, em sua casa, a latrina onde as visitas urinavam e defecavam. Algumas vezes, o vazo já fora também vomitado. Tanto por visitas, quanto por ele, em excessos alcoólicos das festas que ele promovia, uma vez ou outra, banhadas a uísque, cerveja e quitutes.
Um bicho acinzentado, com 27 patas, não muito maior que a parte branca de sua unha, veio correndo pela lateral da usada latrina, ferozmente, de surpresa, entrou pelos cantos de sua luva e picou sua mão esquerda. Picou como se picar fosse seu ócio. Mas não era isso que o faria parar com sua urgente limpeza.
A empregada não pôde ir nesse dia. Estava doente e na fila do SUS. Mais uma pessoa, nessa fila, sem importância alguma. A cozinheira até lavaria o banheiro, onde estava a tal latrina, mas ele achou melhor a sua cozinheira concentrar-se numa boa comida caseira para servir à visita. Fique na cozinha, que ganho mais. Ele disse à sua cozinheira.
Sua esposa negou-se a fazer o serviço. Já seria demais o sacrifício. Apesar de muito rico e a sua esposa ser um produto que ele escolheu a dedo e comprou, ela negou-se a fazer o serviço. Para ser uma boa esposa, isso não faz parte do ofício. Ela dizia, servindo-se uma dose de Martine. Ele não tinha mais paciência para discutir com sua esposa e não teve tempo de chamar uma diarista porque a reunião com seu caro visitante tinha sido marcada de última hora.
Só restavam trinta minutos para sua visita chegar. Era seu chefe. Por mais dono e poderoso que você seja, sempre há um chefe à espreita. E, em visita de colegas e amigos, parentes, sogros e inimigos, a sua casa tem que estar maquiada e maquinada. Mas, quando é seu chefe que vai te visitar, a máscara, a fantasia que a casa vai trajar merecem a nota 10 no carnaval carioca. Então, como um bom funcionário, ele limpou o banheiro de visitas: os ralos, o chão, a privada marcada de merda alheia, a pia com marcas pretas das babas bem-vindas das visitas, etc. Quando terminou, sua mão estava um pouco inchada da picada do bicho desconhecido que invadiu antes sua casa, depois sua privada, e agora sua luva. Ele olhou bem a sua mão inchada e viu que não era nada para se preocupar. Ele também organizou o seu jardim de orquídeas imperais na parte central de sua casa. E, enquanto cheirava uma de suas belas flores, apareceu uma minúscula borboleta, de cor neon, poderia ser o bicho da beleza, mas tinha até dentes, não era nem borboleta, nem beleza (nem apenas uma rima). Era um diminuto bicho com asas agudas e astutas, nem menor, nem maior que um cisco. Era apenas um bicho, que sobrevoou, distanciando-se do nariz aspirador dele, e nos lábios pousou, mordendo-o como um incorreto, torto, inseto. Como se fosse uma surpresa desagradável, ele deu um grito de dor e pulou para trás. Mas isso não o fez parar para pensar sobre as dores e os segredos que estão como presentes todo o tempo e seguiu sua vida ignorando tal rara monstruosidade.
Ele tomou um banho rápido e ensaiou um discurso de agradecimento por receber essa visita tão expressiva e importante. Enquanto falava olhando-se, narciso, no espelho, de seu reflexo, outro bicho surge assíduo. Com uma textura de gota d’água e com braços que pareciam dedos, tudo miúdo. Pelo olho nu, era pequeno, um quase nada, a não ser um mínimo vulto transparente, parecendo água. A coisa aguada pulou em seus olhos e, aliviado, mijou, como se tivesse liberando um veneno, ou uma bênção. Logo após, morreu como fazem as abelhas quando nos ferroam. Ele sentiu esse ardor, que poderia ser uma dor mais vermelha, com mais horror, se não tivesse com tanta adrenalina em seu peito, com ansiedade de menino, esperando seu único e mais importante chefe.
Depois do ardor já ultrapassado, saiu do banheiro de toalha e, no quarto, não teve problemas para se vestir. Já tinha planejado a roupa que usaria quando soube da visita tão inesperada e surpresa que receberia. Poderia ser picado por uma aranha, ou fazer correr mil baratas, ou um vampiro, sugador de finanças, poderia mordê-lo. Nada mudaria sua empolgação com a breve chegada de seu patrão.
De lá, saiu direto para o bar de sua casa, onde escondeu todas as bebidas de sua esposa. E quando, no sótão, guardava os uísques, surge ele, debaixo da garrafa, cor de ouro, mas tão mínimo e menor, que era invisível, ainda mais no escuro, pois ele tinha cor de ouro, mas não brilhava aos olhos vivos. Sem patas, sem braços, sem bicos, outras mordidas. Dessa vez, em sua mão direita. Não inchou, ficou roxa. Mas não doeu muito. Ele não se incomodava com tais mudanças e pequenas dores e surpresas diárias. Organizou melhor os sofás e poltronas da sala, tirou as folhas velhas e insetos que boiavam em sua piscina olímpica, admirou o sol em raios amarelados, transcendentes e alaranjados que invadiam o jardim de sua casa, no sábado à tarde. O chefe só visita quem ele vai oferecer uma promoção. Pensou com um sorriso satisfeito.
O celular tocou, era a secretária de seu chefe cancelando a visita. E remarcando para o outro dia pela manhã, na empresa, às oito e meia. Ele aliviou-se um pouco, sua casa poderia estar melhor para receber tão nobre visita. Depois da nossa conversa, ele virá mais vezes e a casa com certeza estará melhor. Pensou.
Às oito e meia da manhã, ele estava no quadragésimo sétimo andar, na sala da secretária de seu chefe. A sala dela era do tamanho da sala de estar da sua casa. E ele tinha uma casa grande para os padrões brasileiros. Em sua boca, seus lábios eram quase vivos e falavam sozinhos sobre sua felicidade com a tal promoção. E é certo. A promoção vai vir! Afirmou na noite anterior à sua esposa. A secretária olhava apenas para o computador e, às vezes, para um vazio, como se sonhasse também. Mas sonhos eram proibidos por ali, se a empresa não tivesse participação.
Belas pernas. Belos lábios. Sua voz agrada a minha imaginação. Mas ela é só uma secretária. Ele pensou, concluindo sobre a beleza da mulher que estava por trás do título de secretária. Ele desviou um pouco o foco e começou a prestar atenção nas fotografias que estavam na sala. Eram todas de seu chefe. Algumas em preto e branco, umas com aspectos antigos e outras mais atuais. As fotos seguiam claramente uma ordem cronológica. Quanto mais as fotos são atuais, mais o chefe está gordo. Quanto mais rico ficou, maior ficou o tamanho de sua bunda. Pensou sozinho e sorriu educadamente. Se estivesse sozinho no local, teria soltado uma gargalhada. Parou com esse pensamento observando a secretária olhando para o vazio e sonhando. Ela se deixou levar por algum desses sonhos e abriu levemente suas pernas. Ele observou e viu que sua meia calça ia até a sua calcinha e suas coxas estavam descoloridas. Mas não viu muito mais, desviou o olhar quando o telefone tocou.
_Entre – disse a bela secretária, dessa vez com um leve sorriso.
E, da meia calça da secretária, saiu outro bicho. Ele era todo branco, como um urso polar, mas sem garras e microscópico. Veio rugindo, voando, em direção a ele, que se ia fugindo, na ótica do bicho. Antes que ele entrasse na sala do chefe, sentiu uma mordida em sua nuca. Recolheu os ombros como se estivesse com dor, mas disfarçou sorrindo para seu futuro-garantido e atual chefe.
Dentro da sala, que era duplamente maior que a da secretária, com todas as janelas de vidro e uma visão panorâmica da cidade, ele caminha até o centro, onde estava uma cadeira. Com o olhar, seu chefe ordena-o a sentar. Ele senta.
_Bom dia – ele disse ao chefe.
_Bom dia. Sente-se. Me desculpe por ontem. Fui à sua casa, mas no caminho percebi que esqueci na minha casa o principal motivo para que eu te visitasse. Então retornei e, quando cheguei em casa, perdi um pouco o tesão da visita, compreende?
Ele responde que sim e surpreende-se com o linguajar de seu patrão.
_Ali! – o chefe diz, mandando-o ir para onde estava uma maleta que ele apontava, no canto da sala.
_O quê? – ele pergunta o que exatamente seu chefe quer.
_Aquela maleta me fez voltar ontem. Júlio, meu chofer, ou melhor, ex-chofer, o demiti. Ele esqueceu a maleta em minha casa.
_O senhor quer que eu pegue a maleta?
_Perguntas idiotas, respostas ignorantes. É assim que as pessoas são demitidas nesta empresa – disse o chefe.
_Ok – ele foi em direção à maleta. Deu trinta e sete passos até ela, tão grande era a sala do chefe. Pegou na alça, mas a mala estava muito pesada. Com seus dois braços, conseguiu trazê-la para uma mesa central da sala.
_Abra ela. Eu ainda não incluí o código. Pode abrir e, antes de fechar, inclua seu código. O que tem nela é seu – disse o chefe, um pouco distante do seu funcionário.
Antes que ele abrisse, seu chefe o interrompeu dizendo:
_Espera. Por que suas mãos estão inchadas e roxas? Uma está inchada, e outra roxa. Por quê?
Ele tentou disfarçar, mas disse timidamente:
_Insetos. Uns bichos que me picaram. Não sei bem.
_Insetos? Tudo bem. Os piores bichos vêm dos locais mais inusitados, podres e esquecidos. Sempre é assim – seu chefe terminou a fala sorrindo. um sorriso expansivo e dono.
Ele sorriu junto. Mas, antes de terminar o riso do chefe, ele já estava sentado na mesa central e abrindo a mala. Era uma quantidade exorbitante de dinheiro. Seus olhos brilharam.
_Tem aí uma quantia de dez anos do seu salário. Tudo em notas de cem e alguns títulos que concedo para investimento, que valem mais do que o próprio dinheiro.
_O senhor está me demitindo? – ele perguntou, assustado.
_Não. É a sua promoção.
_Como assim?
Primeiro, o chefe gargalhou com vontade e excitação, depois disse sério:
_Você já tem uma bela casa, que eu sei. Tem uma linda esposa. Ganha muito bem aqui. No mercado, em sua área, é uma das pessoas que melhor recebe e é das mais respeitadas. Agora, essa maleta tem, exatamente, em valores reais, dez anos de seu salário. E você tem duas opções:
_Quais? – ele perguntou ao chefe, ansioso.
_Ou você deixa de ser meu capacho e investe esse dinheiro em sua vida e cria sua própria empresa, ou me devolve o dinheiro da maleta, volta para a sua função e, daqui a dez anos, eu te darei três vezes mais que esse valor que oferto agora.
_Como assim?
_Você é burro ou o quê?
_Desculpe – ele disse, sem retirar os olhos do dinheiro.
_É burro mesmo. Olhe, é o seguinte. Ou você continua trabalhando para mim fazendo a mesma função e recebendo o mesmo salário por mais dez anos, ou você pega esse dinheiro. A gente encerra nosso contrato. E você toca sua vida sozinho sendo seu próprio chefe – o patrão diz, asperamente.
_Todo mundo tem um chefe. Você não tem?
_Tenho. Ele me fez essa proposta e ainda estou aqui, fazendo a minha parte. E você, o que quer?
_Por que está me oferecendo isso? – ele perguntou, desconfiando da boa ação de seu amado patrão.
O chefe sorriu e exigiu:
_Vá pensar. Aposto que já está quase perto de sua decisão – ele sorri novamente. – Mas pense bem antes de confirmá-la pra mim. Ou melhor, confirmar a você mesmo.
Ele saiu da sala de seu patrão com a maleta em mãos e disse que iria para casa conversar com sua mulher. O seu chefe zombou de sua cara falando ...já sabia que você faria isso: perguntar à mulher. É o que todos os covardes e perdedores fazem. Enquanto o ele dizia isso, sorria o riso meigo dos chefes matreiros.
No meio do caminho, ele estava preso em um engarrafamento em seu carro importado, blindado e com vidros fumês. Já sabendo qual era a decisão que tomaria sobre seu futuro, ele abriu a maleta com seus olhos e suas mãos e começou a olhar o montante do dinheiro. Babou como se estivesse de fronte a um manjar dado especialmente por Deus e sua caridade eterna. Emocionou-se como se tivesse marcado um gol em final de copa do mundo.
Mas, no antro de suas emoções, um bicho, que estava escondido embaixo das notas azuladas-esverdeadas e títulos, com 87 patas, quatro bocas e 98 dentes, sem falar de seus 113 olhos, pulou em sua mão. Era tão pequeno que ele não o percebeu. O bicho, esperto, pulou em seu pescoço e o mordeu. Cravou seus dentes na jugular e chupou um pouco do seu sangue. E chupou mais. E mais. MAIS! Até mudar de cor, deixando de ser marrom, tornando-se vermelho-roxo. O bicho trocou fluído e saliva com sua vítima, que não percebeu a mordida que aconteceu sem dor. Depois do ato, o bicho saiu voando até perder suas asas. E caiu no tapete do carro onde nunca mais seria visto, e ficaria esperando a morte com um riso débil e lisérgico de felicidade.
      Ele, já mais que decidido, chegou em casa. Ainda assim, perguntou a opinião da esposa. Para ela, de onde viesse mais dinheiro era melhor. Para ele também.
Ele, ofendido por causa do seu chefe que o chamou de burro e antes lhe deu um cano, pensou: Foda-se. Como se fosse dá tudo certo, ele seguiria sua trilha: primeiro foi demitido, depois vai tirar umas férias e, logo depois, ser chefe de si mesmo.
Intenções são instigadas por engenharias transcendentais.
De primeira, o efeito da mordida do bicho do dinheiro fez surgir em seu rosto pequenos fiapos de barba, os pentelhos da cara. O dia estava começando. Ele e sua esposa já estavam com felizes sorrisos explanados, comemorando a vida. Uísque. Petiscos. Champanhe. Sexo na sala e com direito à gozada de ambos. Era certo que, com o investimento inicial e o crédito que ele tinha na praça, seria o dono, o líder de mercado da sua área de atuação. Era certo que seus delírios megalomaníacos eram o efeito do veneno do bicho do dinheiro em seu sangue. Vou fazer um conglomerado de empresas que atuem em todas as áreas que tenham a ver com a bolsa de valores. Quem sabe não faça uma bolsa com meu nome... Com meu talento e esse investimento inicial, eu posso tudo. E, entre os sorrisos e brindes, ele teve outra ideia megalomaníaca. Dessa vez, a ideia veio com um cunho de certeza em seu peito. Essa nova ideia dará certo! Afirmava. Mas, antes que ele contasse para sua mulher a tal ideia, ela sentiu nele um cheiro insuportável. Ele não percebeu, mas ela inventou que estava com dores no corpo, com dor de cabeça. E saiu para a massagem, e depois para salão e, no fim do dia, para relaxar, meditação ao ar livre. Ela só voltaria no horário da novela das nove, à qual não deixa de assistir.
Ele estava tão extasiado que não se importou. E, sozinho, vislumbrou o sonho de seu pai, que era pastor na igrejinha do interior onde ele passou a sua infância. Até ter o pai assassinado por um fanático religioso. Seu pai foi morto em sua frente. E, assim, ele foi até seu quarto e pegou a antiga gravata que seu pai usava em seus cultos. De fronte ao espelho, com a gravata no pescoço, ele sonhou que em vez de montar o tal conglomerado de empresas no seu setor, poderia abrir uma nova igreja: José de Deus, a igreja da sua salvação. Em homenagem ao seu pai José. Ele sempre foi bom de lábia e sabia falar bem de Deus. Ou seja, já tinha meio caminho andado. E sem falar que Deus sempre o ajudou nos piores momentos de sua vida. Ele era um filho merecedor. E, assim, eu abrirei uma igreja. Concluiu em pensamentos.
Mas, antes que tomasse a primeira atitude ligando para um dos seus irmãos, que era pastor em outra igreja evangélica, para convidá-lo a essa missão divina e de fé, viu seu reflexo no espelho e achou-se mais baixo e curvado. Pegando em suas costas, sentiu sua coluna mais curvada. Olhou novamente seu reflexo e viu que realmente ele estava curvado. Mais redondo. Como se fosse um “C” com duas pernas e dois braços. Seu rosto estava mais cabeludo. Preciso fazer a barba. Pensou. E foi ao banheiro das visitas, que outro dia ele tinha lavado para seu chefe poder usar. Mas seu chefe não foi. Deu bolo. Com certeza abrirei meu negócio. Serei o dono de tudo que está ao meu redor e meu próprio chefe. Chefe de minha alma. Ainda vou catequizar meu ex-chefe e todos meus colegas de trabalho na minha fé. Vou multiplicar em vinte esse dinheiro. Vou enquadrar fortunas. Com a força do Senhor! Aumentar tudo em cem vezes...
      Enquanto ele sonhava no banheiro de visitas e começava a fazer sua barba, ocorreu-lhe outra ideia de como poder ter ainda mais dinheiro sem que o fisco comesse uma parte do bolo. Como é que meu chefe ainda não pensou nisso? Depois eu que sou o burro. Concluiu. E, antes que terminasse sua barba, viu-se político. Senador. Em breve, com tudo que ele realizasse, um dia ele seria presidente. Até porque, quanto mais obras, mais votos. Quanto mais votos, mais dinheiro lavado e mais dinheiro no bolso. Isso era certeza!Eu posso, pois sei onde se encontra o poder de poder. Ele filosofava sozinho, até que percebeu que não estava surtindo efeito o feitio de sua barba. Tirou o creme de barbear e tentou raspar com a lâmina de forma grosseira. Em menos de trinta segundos, todos os cabelos cresciam em seu rosto. Ficou um pouco desesperado e foi até a sala, onde olhou o dinheiro e tranqüilizou-se. Pagarei o melhor médico para resolver esse problema. Pensou nessa solução. Mas, antes de se aliviar de vez e ter mais uma de suas grandes ideias, percebeu em sua barriga um vão. Um vazio. Um vácuo. Passou a mão e sentiu no lugar do umbigo um buraco. Tirou a camisa e olhou. Sim, tinha um buraco no lugar do umbigo. Foi direto para o banheiro, onde vomitou assustado. Esse ato o deixou ainda mais assustado, pois o vômito saiu todo pelo buraco que estava no meio de sua barriga. O vômito tinha um cheiro de podridão e era de cor amarronzada. Ele ficou muito nervoso e começou a chorar. Ele olhou-se no espelho e viu-se, mais fielmente, no formato de um “C”, ou era um “U”. Não conseguiu identificar bem no que estava se transformando. Sua barriga começou a doer e, com uma vontade enorme de cagar, sentou-se na privada. Precisou forçar, pois não saía nada. Forçou mais um pouco e, pelo buraco de sua barriga, saiu a merda. O que melou todo o chão do banheiro. Entrou debaixo do chuveiro e voltou para a sala sem se importar com a sujeira que tinha produzido.
Na sala, em cima do dinheiro, estava uma concentração de insetos. Seus olhos não conseguiam ver direito o que eram os insetos, mas eles eram do grupo dos bichos de onde saiu o bicho do dinheiro que o mordeu no carro. Todos estavam juntos, planando e voando ao redor do dinheiro como moscas. Quando os bichos o avistaram, pararam no ar como borboletas e Dadá Maravilha, e migraram grunhindo em direção ao buraco que tinha se formado na sua barriga. Ele percebeu que alguma coisa de errado tinha com aquele dinheiro todo. Vestiu-se, fechou a maleta de dinheiro e, ainda umas 17:30h, saiu de sua casa com os insetos voando ao seu redor.
Quando ele chegou à empresa, subiu o elevador com todos ao redor de narizes fechados e olhando-o, como se ele fosse uma fossa humana. Seu fedor já era perceptível e insuportável até para ele. Mas não tinha o que fazer, a não ser conseguir falar com seu chefe.
Ainda mais “C”, com cabelos pelo rosto, pelos braços, e que não paravam de crescer, com o buraco em sua barriga aumentando cada vez mais, invadiu a sala onde estava a secretária e, sem pedir autorização, invadiu a sala do seu chefe. A secretária entrou perguntando se o patrão queria que chamasse a segurança do prédio.
_Não precisa, querida, eu conversarei com ele tranquilamente.
A secretária obedeceu. Saiu da sala tampando o nariz, fazendo cara de nojo e olhando para ele.
_O que tem nesse dinheiro que você me deu? – ele perguntou alterado.
_Você é um porco mesmo. Está precisando de um banho – disse seu chefe, tampando o nariz.
_Não enrola, porra. O que tem nessa desgraça de dinheiro?!
_Adalberto, meu querido – disse o chefe carinhosamente. – Você era meu melhor funcionário. Mas você fez sua escolha...
_Que escolha? – perguntou Adalberto.
_Você escolheu se demitir, não foi? Com alguns ex-funcionários a escolha demora uma semana, com outros, poucas horas. E esse foi seu caso, não foi? Para você não tem mais jeito.
      Antes que Adalberto falasse algo, seu corpo curvou-se mais, e seu rosto, suas pernas, braços, dentes, tudo que não fosse enrugado, enrugou-se como se sua pele envelhecesse cinquenta anos. Sua face. Seus olhos. Seu riso. Tudo virou pele enrugada. Ele tornou-se um oval, um círculo oval enrugado. Quase um vegetal, se não fosse ainda sua consciência ativa, percebendo tudo que acontecia no momento. O buraco em seu umbigo parou de crescer, mas ganhou uma consistência e fechou-se um pouco mais. Adalberto perdeu tamanho. Ele ficou pequenino, cabendo numa palma de mão. Não tinha mais pernas, nem braços. Agora ele estava com uma cor indefinida. O chefe levantou-se de sua cadeira já abrindo o zíper de sua calça de linho, número 67. Baixou as calças e a samba-canção. Pegou o que era Adalberto com certa dificuldade, quando se agachou. Analisou em sua palma da mão o que Adalberto é agora: um círculo enrugado, oval, com um buraco no meio, cabeludo ao redor e de cores indefinidas: às vezes roxo, às vezes avermelhado e até, às vezes, rosa.
_Como tem que ser, ele fede. É certo – o chefe fala sozinho, satisfeito.
Com um sortido sorriso, acompanhado pelas suas estrias, não menos sorridentes, o chefe colocou Adalberto entre as bandas de sua bunda. E Adalberto, o mais novo cu do patrão, seguiu seu caminho, depois da fadada escolha, rapidamente adaptando-se a dança do quadril-senhoril que se mexia, alongando-se um pouco mais, como se estivesse harmonizando o espaço para o mais novo agregado.
E a bunda do chefe, branca, cheia de mimos, contaminada com banhas de primeira estirpe e uma elegante felicidade, sorria.




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