quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Com o afeto - conto do livro "afetos, abismos & engenharias"

Com o afeto

Apesar de não ter como mudar suas impressões digitais, existiam outras mudanças necessárias para fazer funcionar o ideal que movia sua vida. A primeira mudança foi nas bochechas. Precisava deixá-las mais rosadas e menos arredondadas. O olhar era praticamente igual. Ele dizia que nascer com esse olhar foi o maior presente que Deus lhe deu. Mudou as bochechas e a testa. E o rosto ficou praticamente gêmeo. Os olhos tinham a mesma cor e tom. A alma era diferente, mas eram irmãs no querer. Isso era uma certeza em seus sonhos mais profundos. O pescoço do ídolo era mais afinado e longo, ele não perdeu tempo e fez também uma cirurgia que lhe conferiu essa característica. Implantou mais cabelos em sua caixa de peito malhada, como o ídolo tinha. Mudou a cor de seu cabelo. Fazia questão de ter o mesmo penteado e corte de cabelo do ídolo. Ele tinha que malhar, pegar pesado, como seu ídolo. E pagava com sacrifício umas das melhores academias de sua cidade. Nela, ele malhava com afinco. A intenção sempre foi seguir toda a exuberância de seu deus, ficando igual, espelho, semelhante ao ídolo. Por isso, até os exercícios na academia eram iguais. Se um dia alguém o confundisse na rua com seu ídolo, gozaria, planaria, entraria em catarse por causa dessa pessoa que o confundisse. Ele não iria negar. Ele diria que sim, que era o seu ídolo e até daria autógrafos. Isso, fazendo todos os trejeitos do ídolo. Ele treinava em casa para quando esse dia chegasse. Ele conseguiu mais dinheiro com seu esforço diário, trabalhando dobrado, e fez uma cirurgia que deixou seu pé no mesmo tamanho e com os mesmos pelinhos do pé de seu ídolo. Ele viu a foto do pé do ídolo em uma revista de celebridades. A matéria falava sobre “os pés mais bonitos do mundo”. Ele mudou o formato de sua mão, queria e conseguiu ficar o máximo possível com a mão parecida com a do seu ídolo. Mudou as bolsas de cansaço embaixo dos seus olhos. Era agora o espelho quase verossímil do ídolo. Um gêmeo nascido de outra barriga. Sua vida girava em torno do seu ídolo, o anjo que guiava as vontades e prazeres de sua vida.
Ele fez mais de quarenta e uma cirurgias para ficar praticamente igual ao seu ídolo. Faltava alguns detalhes, como os dentes. Os seus eram grandes e brancos, os do seu ídolo, pequenos e um pouco tortos. Isso soava para ele e para a mídia como charme no sorriso do ídolo. Faltava também uma depilação permanente na bunda para ficar sem cabelos nas nádegas. Ele sabia que seu ídolo não tinha cabelos na bunda. Só depilar não servia. E faltavam-lhe outros pequenos detalhes, pois ficar igual a outra pessoa exige amor, vontade cega, tempo e dinheiro.
Um dia, depois que saiu do trabalho, uma besta parou ao seu lado enquanto caminhava na calçada. Homens grandes e fortes saíram do carro dando-lhe socos na barriga e na nuca. Ele não resistiu e pelos brutamontes foi levado.
Vendado e sem ter noção do que acontecia, rezava. Ele estava preso em algum outro lugar. Pelo vão que ressoava sua voz, o lugar parecia um galpão. Uma pessoa chegou perto dele e disse:
_Sua intenção é qual? Ficar como o grande e célebre artista Vandré Sol para trabalhar como seu sósia ou ser o Vandré Sol?
Ele não disse nada. Ficou calado e assustado com a situação.
_Não vai me responder?
Ele estava calado por medo. Alguns segundos de silêncio e sentiu em seu estômago um soco. Ele borbulhou de dor.
_O que você quer? – ele perguntou, choroso.
_Quero que me responda.
_Responder!?
_Sim. Sua intenção é qual, ficar como Vandré Sol para trabalhar como seu sósia ou ser o Vandré Sol?
_Como assim?
_Dá outro soco nele – a voz ordenou.
_Espera! Não faz isso. Eu quero ser ele. Estou aqui por causa disso. Vocês são algum tipo de grupo radical que é contra pessoas que seguem seus ídolos à risca? Eu amo o Vandré Sol. Não fiz e não faço mal a ninguém. Me deixem...
_Calma, garotão. Não precisa ter medo.
Ele fica calado, mas quase choroso.
_Você percebeu que está amarrado em uma cadeira que tem rodas para te deslocar. Percebeu?
_Sim – ele diz, ainda receoso com a situação.
_Vamos te levar pra outra sala. E, nessa sala, você tem duas opções. Seguir o que me disse agora ou voltar pra cá e ser mais um na estatística de desaparecidos.
Ele não entendeu muito, mas ficou calado. Sentiu alguém deslocando a cadeira que estava para outro local. Ele ainda estava vendado e com muito medo.
Depois de três minutos, chegou ao destino a que foi levado. Uma voz, que mexeu com seu coração, disse.
_Você me ama e daria sua vida por mim?
Ele ficou calado, sem acreditar de quem a voz poderia ser.
_E aí, você é meu maior ídolo?
_Vandré?
_Sim.
_Vandré, pelo amor de Deus, me ajude! Uns caras me raptaram...
_Eu mandei fazer isso.
_O quê? Como assim?
_Cala a boca um pouco e deixa eu falar.
_Ok. Por você faço tudo!
_Há dois anos atrás fui diagnosticado com uma doença degenerativa e rara. A pessoa que tem aparecido em meus compromissos não era eu. Era um sósia como você quer ser.
_Não sou um sósia. Quero ser você. Entenda o espírito da coisa.
_Tudo bem, mas me ouça.
Ele ficou em silêncio e Vandré, seu ídolo, continuou:
_A minha imagem está mais parecida com um monstro do que com uma celebridade.
Como se houvesse alguma diferença.
_Como assim? – ele pergunta.
_Essa doença destrói minha pele e me faz envelhecer muito rápido. Entende?
_Sim, mas como posso te ajudar?
_Você será a próxima pessoa que me substituirá nos compromissos que tenho.
_É sério? – ele pergunta, sem acreditar.
_É sério. Faremos mais algumas mudanças plásticas em você. Tudo pago por mim. Mas você tem que assinar um contrato antes, de confidência.
_Faço tudo para ser você.
_Ok. Mas...
_Eu quero te ver, tira a venda!
_Não me interrompa. Ouça com atenção – ele faz que sim com a cabeça. – O último sósia, depois de algum tempo, começou a ter uma loucura de estrelismo e nós o eliminamos. Entende? Você está aqui pra me servir. A única estrela que existe nessa situação sou eu, o grande astro Vandré Sol.
_Entendo. Eu te amo o suficiente e faço o que você pedir.
_Ok. Vamos espalhar entre seus amigos e conhecidos que você morreu. Faremos um enterro falso. Você viverá para ser eu.
_Ótimo. Isso que eu sempre...
_Eu sei. Eu sei. O último cover me disse algo parecido. Por isso vou repetir. Esse contrato que vai assinar lhe garante viver como eu e te obriga a obedecer ao meu empresário em tudo. De acordo com a minha conveniência.
_Faço tudo por você. Mas agora tira a venda, quero vê-lo, por favor!
_Não. No contrato também especifico isso. Estou muito feio pra qualquer pessoa me ver. A partir de hoje, você será eu.
Ele sorriu em esplendor.
_Silva! – O ídolo chama um segurança que estava presente na situação. – Tira as calças dele. Desamarre e o amarre de costas na cama.
_Ei, o que é isso? O que vai acontecer?
O ídolo dá uma risada estridente e diz:
_Calma, meu rapaz. Estou brincando. Quando eu for comer seu cu, será com o afeto de sua permissão.
_Como assim?
_Tou brincando. Mas Silva vai tirar suas calças agora, preciso ver o tamanho de seu pau. Quero ver se precisaremos fazer plástica nele pra aumentar, pois vou posar nu em breve. Quer dizer, você irá fazer isso em meu lugar.
O Silva tira as calças dele, o novo Vandré.

_É! Você tem um pau que não passará vergonha no ensaio de nu artístico que farei.  


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