sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Martinha e Fidel - conto do livro 'afetos, abismos & engenharias'

Martinha e Fidel

Marta estava casada com Fidélis há 69 anos. Uma linda história de amor. Mas, naquela manhã de verão clara, densa e quente, Marta, já com seus 88 anos, não acordou no horário costumeiro de seis e meia. Seu grande amor Fidélis, que ao lado dormia, não percebeu.
Fidélis não percebeu que Marta não foi ao banheiro com sua bexiga cheia, vazando gotas. Não percebeu que ela não abriu a porta e a janela do quarto, clareando um pouco o ninho de amor. E que ela não veio até ele e acariciou sua face com todo afeto e carinho, que manhãs como essa merecem.
Ela não disse:
 _Bom dia, Fidel – com a voz branda e costumeira.
Às sete e meia da manhã, Fidélis, que sempre abria os olhos vagarosamente brigando com a claridade matutina, despertou com uma leve escuridão em seu quarto, como se a escuridão fosse um anjo que o esperasse acordar para sombrear e nomear o momento de seu novo amanhecer como “o fim dos seus sonhos”.
Fidélis levanta-se e vai até o banheiro, ainda zonzo de sono. Lava o rosto, faz gargarejo e coloca sua dentadura. Vai até a janela e abre-a.
_Martinha, você ainda dorme? – nada de resposta.
Fidélis fica em pé de frente à sua janela observando Marta, que ainda estava deitada na posição habitual de seu melhor sono: de lado, com duas almofadas, uma entre as pernas e outra na cabeça. Marta, de olhos fechados, era a perfeição que o acompanhou por 69 anos. Ela era a sua grande parceira, amiga, namorada, amante, esposa, e, às vezes, até inimiga íntima. Por isso, dormir com ela não era só muito bom, mas também acolhedor e essencial para que a vida de Fidélis tivesse sentido. E Fidel, como era chamado por Marta, afirmava isso aos amigos:
_Ela é o ar que não pode faltar aos meus pulmões!
Fidélis, com um misto de preocupação e carinho, aproximou-se de sua amada:
_Martinha! Martinha! Marta! – mesmo sem seus óculos, percebeu que ela estava quieta e calada demais. Ela sempre teve o sono leve, não é possível que não me ouviu. Pensou.
Quando Fidélis a tocou, Marta estava fria. Gélida.
Fidélis, primeiro, ficou pálido e de pé, em silêncio, ficou observando-a por cinco minutos. Depois caminhou para o outro lado da cama e sentou ao lado de sua amada e a fez cafuné. Com os olhos bem abertos, flamejantes e vidrados no seu grande amor, ele chorou copiosamente. Primeiro seu choro era mudo, depois se juntou a gemidos de dor e babas de desespero.
Pobre Fidélis, um dia antes do acontecido, depois de entregar uns exames de sua condição física ao médico, ouviu:
_Senhor Fidélis, avise à senhora sua esposa que a sua saúde vai de vento em polpa, vocês têm mais dez, vinte, trinta anos juntos – o médico afirmava a Fidélis. Mas essa afirmação, hoje, era motivo de dor. Ele queria ir com ela.
Já de pé, olhando para seus olhos no espelho do quarto, ele recordou-se o quanto Marta era vaidosa: ela sabia cuidar de sua beleza e de sua vida como ninguém. Por isso, até na hora de partir, vai-se linda, sorridente, vibrante. Luz. Fidélis dizia a si já mirando suas vistas para ela.
Assim, ele apegou-se no que decidiu.
Nesse dia, Fidélis saiu para dar sua caminhada matinal. Um pouco atrasado, mas foi. Bebeu a água de coco que tanto eles adoravam, dessa vez sem a companhia de Marta. Em casa, mais tarde, ele preparou o almoço, como sempre fez em ocasiões especiais. Botou a mesa para dois. A quantidade de comida era exatamente para dois. Depois da polenta pronta, prato preferido do casal e que representava a vida feliz que eles tiveram em família, Fidélis colocou sua comida no prato e foi comer na cama, ao lado dela. Bela. Imponente. Morta.
_Só uma pessoa boa como você, Marta, falece dormindo sem sentir dor e peso algum da morte. E, ainda depois do ocorrido, fica sorridente, branda em todos os detalhes – Fidélis falava sozinho, observando que sua amada estava com os lábios no ponto do riso. 
Sem muito apetite, Fidélis não passou da quinta garfada em seu prato de comida. Seu coração marejava e sondava muitas possibilidades que ele poderia escolher para seguir sua vida. Mas seu arrebatamento pelo cadáver de sua esposa e pelo que tinha vivido ao lado dela foi mais forte, então ele escolheu segui-la. Mesmo recordando que deixaria seus três filhos, oito netos e quatro bisnetos.
_Mas o que fazer? Eles já são autossuficientes e mais que proprietários de suas vidas – ele raciocinou e disse a si, dando um veredicto.
Fidélis deitou-se ao lado de sua amada, começou a sentir seu coração, que gritava por dentro, como se existisse mil Fidélis internos gritando para ele ir com Marta.
_Mas, o que fazer? Matar-me? – ele indagava-se.
Fidélis nunca faria isso, e se fizesse, Marta não lhe perdoaria.
_O que fazer? O maldito do médico me deu saúde “eterna”. Grande calhorda risonho.
Depois de um dia prostrado e deitado ao lado de sua amada, pensativo sobre o assunto e desejando mais do que tudo o fardo, ou melhor, o presente de ir com ela, seu coração sente uma pontada. A pontada veio como se Deus estivesse apertando com o dedo indicador o coração de Fidélis, ajudando-o em seu desejo. Ele percebe que, enfim, a vida realmente irá lhe devolver todo o seu esforço por ter sido um homem bom, leal aos princípios do bem. Um homem digno. Ele vai poder ir com sua “Martinha”.
_Estou sentindo aqui dentro que logo nos veremos, Martinha. Meu coração está em comunicação direta com Deus e diz a Ele que quero ir, Martinha. Só me levantarei dessa cama, minha Martinha, depois que eu for com você. Minha saúde só é digna de vida quando seu sorriso exala som e gracejos pra mim. Minha saúde só merece estar bem quando tenho a sua beleza ao meu lado, a sua pessoa amiga ao meu lado. Não consigo e não quero viver sem a sua linda mão apertando a minha, Martinha. Minha vida é um abismo quando estás morta e deitada aqui agora enquanto eu ainda pereço vivo. Leve-me, Marta! Deus, manda a morte para mim como um anjo salvador! – Fidélis proferia as palavras, vezes gritando, vezes resmungando, vezes chorando...
Já era noite adentro. Fidélis realmente começou a sentir pontadas em seu coração e uma pequena falta de ar. Ele estava à beira de um colapso. Por dentro, ele sentia um buraco negro que tinha dentes famintos em suas beiradas. O buraco esfomeado triturava cada parte de seu corpo. Era isso que ele queria e orava pedindo. Era isso o que Deus enviava-lhe. A tristeza era ordem e regra em Fidélis. O cadáver de Marta já exalava odores incomodativos. O cadáver estava mais branco. Mais frio. Menos riso. Mais morto. E isso contribuiu para Fidélis chorar mais, afundar-se mais no desejo de morrer.
De madrugada, já perto do amanhecer do dia seguinte, Fidélis desmaiou ao lado de Marta.

Já se tinha ido dois dias e ninguém atendia ao telefone que tocava dentro da casa do casal de velhinhos. Seus filhos e netos estavam preocupados, pois Marta e Fidélis moravam na praia e o resto de sua família em outra cidade. Alguns de seus parentes, um filho e dois netos, vieram até a cidade onde eles moravam para averiguar tal sumiço. A vizinha disse que já bate à porta há dois dias e ninguém atende.
_Ontem à noite, quando ventava mais forte, senti um cheiro estranho. Pensei em chamar a polícia, mas pode ser que eles nem estejam aí – disse a vizinha ao filho do casal.
O filho mais velho de Fidélis agradece à vizinha e diz que chamará, sim, a polícia para arrombar a porta da casa de seus pais, já que os portões eram feitos de aço da melhor qualidade. Os netos, sem paciência de esperar a polícia, dão um jeito e arrombam a porta sem pedir licença...

Fidélis estava com Marta caminhando pela praia, procurando estrelas-do-mar, molhando os pés nas ondas salgadas e dando nome às nuvens. Mas um cheiro de hospital invade suas narinas. Fidélis abre os olhos e assusta-se ao se deparar com um quarto de hospital, o seu médico, seu filho e seus netos sorrindo porque o “grande pai” abriu os olhos, mostrando-se realmente um homem de saúde. Assim como seu médico havia também confirmado aos seus parentes.
Porém, Fidélis estava deitado numa cama de hospital, com o corpo 100% paralisado, sem poder comunicar-se, dependendo da boa vontade alheia e entendendo que tinha virado um vegetal. Ele compreendia a situação por inteiro, podia ouvir e enxergar, mas sem poder mexer-se ou dizer qualquer coisa. Preso por dentro, Fidélis chora. Realmente Marta foi-se, só. E ele talvez tivesse que viver ali prostrado por mais dez, vinte, trinta anos. Como um prêmio, como uma amostra e merecimento por ser tão bom e um homem de bem por toda vida.
_Ele é a resistência e a sobrevivência em pessoa – disse o satisfeito médico a todos os presentes no quarto.
Um padre entra no quarto e diz:
_Vim rezar pelo seu Fidélis. Um dos melhores e mais corretos homens que já conheci em vida.

Melancólico, desgostoso, Fidélis implorava a Deus e pedia pela sua morte. Pelo amor de Deus, eu sou merecedor! Eu mereço morrer e ir com Marta. Leve-me! Gritava dentro de sua cabeça.                          

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