sábado, 8 de fevereiro de 2014

Vocação e entrega - conto do livro 'afetos, abismos & engenharias'

Vocação e entrega

Na íris do pai, nos braços da mãe de alongado sorriso, Kátia nasceu em um sábado. Sua avó, Ofélia, levou o padre para batizá-la ainda recém-nascida. Sua mãe, que já tinha caído em todos os buracos da vida e recuperou-se quando encontrou Jesus, aprovou a ideia de sua sogra.  O pai de Kátia não desagradava sua mãe, Ofélia. Então, em nome de Jesus, ainda no hospital, Kátia foi batizada no domingo.
Aos sete anos, quando brincava com seus amiguinhos e amiguinhas na terra batida do colégio público que estudava, viu um homem do outro lado da grade chamando seu nome. Ele tinha uma voz suave como uma brisa que vem reconfortar o calor solar matutino. Ela atravessou o pátio do colégio, foi até a grade e sorriu para o homem. Ela deu a mão, cheia de confiança em seus olhos, através da grade, para o desconhecido. O homem de voz suave tocou a mão infantil e delicada de Kátia. Ela sentiu em seu peito, mesmo sem entender bem o que sentia, um palpitar vibrante e iluminador. Kátia, vem pra fila! A professora chamou a garota do outro lado do pátio. A recreação havia acabado. No resto daquele dia, Kátia ficaria cheirando o odor único e balsâmico que ficou em suas mãos, depois de tocá-la nas mãos do homem que foi visitá-la no colégio.
Aos doze anos, quando já tinha menstruado, sempre sonhava com a cena de sua infância que ainda não esquecera. Kátia acordava suada e trêmula, e essas imagens repetidas na sua cabeça invadiam a sua realidade. Os seus sonhos traziam imagens decoradas e que permeavam os seus dias com frequência: a mão máscula e mais velha, tocando a sua mão. Um homem que vestia uma roupa branca, sem sujeiras e com cheiro agradável. Era uma camisa parecendo uma bata e uma calça visivelmente de algodão. Ele estava de pés descalços. Ele tinha uma boca tranquila, de onde saía, quase como música, o seu nome “Kátia”, como um chamado áureo e acolhedor.
Quando Kátia já tinha 15, viu o homem novamente. E, assim, voltou à sua memória o dia em que, pela primeira vez, ele apareceu à sua frente. Era verdade. Aquele cheiro, aquela voz, a visão não era um sonho. Nesse dia, ela viu bem de perto seus olhos castanhos e sua pele branca, porém rosada nas bochechas magras. Uma boca nem muito grande, nem muito pequena. O peito cabeludo era bem visível. Suas mãos eram grandes e fortes. Másculas. Tinha pelo menos um metro e oitenta, ou mais. Diferente da barriga de seu pai, que se conformava e acolchoava-se no terno cinza do culto de domingo, o homem era visivelmente magro e até atlético, como se andasse muito por aí.
Ela estava no parque com suas amigas esperando os colegas de colégio. Entre esses colegas, um seria seu primeiro namorado, se não fosse esse reencontro. O homem retornou aos olhos de Kátia e sua voz veio junto chamando-a. O tom da voz veio leve e suave percorrendo o que chamamos de vácuo, ou vazio, quase como uma borboleta, espalhando beleza e suavidade pelo ar:
_Kátia... – ele chamou-a.
Kátia novamente sentiu a sensação de quando era criancinha em seu colégio. Disse às amigas que iria procurar um banheiro, e quando Rosa ofereceu-se para ir junto, achando que as duas iriam futricar e paquerar pelo caminho, Kátia negou a companhia:
_Rosinha, preciso ir sozinha. Meu pai, em seu último sermão, na igreja da comunidade, disse que temos que encontrar sozinhos as trilhas de nossa vida.
_O que isso tem a ver? – perguntou Rosinha, sorrindo, com seu jeans esperto.
_Se você lesse mais o Livro, entenderia – disse Kátia, com sua longa e bordada saia, apontando para uma frase que estava na grade metálica da roda-gigante: Leia a Bíblia que aprenderás a realmente ler!
Kátia não foi ao banheiro, desviou no caminho e foi até o canto sombreado onde estava o homem que povoava seus sonhos com frequência.
_Oi.
Ele não diz nada. Sorri e pega no cabelo de Kátia, como se fosse fazer cafuné. Kátia ficou vermelha e deixou que o homem lhe fosse carinhoso.
_É você mesmo? Eu te vi quando era bem pequenina. E sempre sonhei com você. Achei que era um sonho ou alguma visão minha...
Antes que Kátia continuasse sua fala, ele encostou-se e cheirou seu pescoço, por baixo de sua orelha. Depois de um momento cheirando-a, olhou novamente para o rosto delicado e os olhos juvenis de Kátia, e sorriu como se estivesse aprovado o cheiro. E, a fim de saber qual era o sabor do sal no suor da pele virgem e delicada da menina, roçou seus lábios suavemente nos lábios de Kátia, indo seguidamente para o tórax dela, enlaçando-a pela cintura e encostando o corpo da menina no seu. Kátia não reagiu, confirmou que ele realmente tinha o cheiro agradável que ela sentia em seus sonhos e que se apresentava em suas lembranças olfativas. Ela colocou de lado sua cabeça, quase encostando sua orelha no ombro dele, e puxou seu cabelo, do outro lado do ombro, para cima, como se abrisse espaço para que ele a beijasse mais. Nesse momento, ele já não a beijava nem a cheirava, começou a proferir palavras divinas em seu ouvido. Kátia fechou seus olhos, ouviu com atenção. Mordendo os lábios.
Depois da conversa e dos toques íntimos com o homem, ela voltou para o grupo de amigas e disse, com os lábios iluminados de felicidade, que tinha de ir para casa! Aquela noite, que seria a sua primeira noite com seu primeiro amor na roda-gigante que tinha a frase sobre a importância da Bíblia na vida das pessoas, não foi mais essa noite. O homem escolheu e mudou o destino de Kátia.
      Com 17 anos, Kátia estava tomando as aulas de iniciante do Convento das irmãs Virgens Marias e devotas do senhor Jesus. E esse caminho foi escolhido dois anos antes, numa noite em que ela chegou do parque e disse ao seu pai a decisão que tinha tomado para sua vida. Seu pai que era devoto de outra igreja, não gostou de início, mas, para não se contradizer em relação às suas falas sobre “caminhos e intenções”, apoiou a escolha santa de sua filha.
_Eu te garanto, meu pai, que uma luz, acompanhado de uma voz suave, iluminou para mim esse caminho! – afirmava Kátia ao pai na época que tomou a decisão.
Sua mãe e sua avó, Ofélia, não apoiaram, mas reduziram-se à ideia social de que quem manda e toma as decisões finais na casa é o marido. Ofélia, que ainda tentava, por dentro das paredes da casa daquela família, conseguir moldar seu filho e sua neta, faleceu dormindo. Com isso, a mãe de Kátia não teve forças e realmente se conformou com a realidade. Entregou a filha para o senhor Jesus.
_Querida, ela começará nesse caminho, mas vai terminar fazendo sermões ao meu lado. Os caminhos são tortos, mas o senhor Jesus e Deus fazem o fim ser justo – dizia o pai, acalmando a mãe.
      Com 18 anos, com méritos, Kátia formou-se em seu curso e tornou-se mais uma freira. Mas, antes do título de sua vida ser exposto em formato de véu, participou, na igreja Nossa Senhora Aparecida, do seu matrimônio obrigatório com Jesus. Ela e mais nove virgens consagraram-se e casaram-se com ele. A cerimônia, à base de muita oração, santos cânticos e nenhum luxo, durou uma hora. Logo após, Kátia sorria com lágrimas nos olhos e felicidade no coração, despedindo-se de seu pai e sua mãe.
A partir de hoje, ela ficará confinada no convento por 10 anos, até terminar sua vigília inicial pelo corpo, sangue e sacrifício de seu marido, digo, de Jesus Cristo.
      Na primeira noite no convento, rezou mais de três horas com suas irmãs pelos melindrados da terra. Orou sozinha por mais uma hora pelo seu pai e sua mãe. Pediu que eles fossem fortes e felizes, pois ela estava onde queria. Pediu, como uma esposa recém-casada pede ao marido, que seus pais fossem resguardados na eterna misericórdia de Deus. Jantou uma sopa morna e que estava muito boa. Alimentou-se uma vez apenas, dois pratos é sinal de gula. Às 21 horas, foi para seu dormitório. A madre irmã Lucinda a levou.
_Aqui será onde você vai passar maior parte do tempo. Esta é a primeira e última vez que trago você para o quarto. As portas se fecham às 21 e 15 e se abrem às 8 da manhã, em ponto. Durante esse período, tente dormir no máximo seis horas e, no restante do tempo, estude a Bíblia e reze pelos condenados da terra.
_Tudo bem – disse Kátia, contente com o início de sua jornada.
Antes que irmã Lucinda saísse, Kátia lhe fez uma pergunta:
_Irmã Lucinda, por que esta é a última vez que me traz ao meu quarto? Não compreendi. O que quis dizer com isso?
_Somos proibidas de entrar no quarto das outras. Agora somos todas casadas com o senhor Jesus e vivemos para rezar para as pessoas que não nasceram abastardas nessa vida e estão esquecidas pelo mundo.
_Não entendi ainda...
_Não tem o que entender. Está na hora de fechar o seu quarto. Dedique-se à sua fé. Você não precisa de nenhuma de nós em seu quarto durante a noite, nem durante o dia. Este é seu espaço pessoal. Aqui nos falaremos apenas nas refeições e no ensaio do coral da igreja. No resto do seu tempo, dedique-se às suas orações e ao senhor Jesus. Lembre-se: não existe espessura de portas e paredes para o nosso senhor Jesus! Ele e seu pai, Deus, estão em todos os cantos, onipresentes.
Kátia, em sua inocência, ainda não compreendera por que tais restrições, mas preferiu não aporrinhar ainda mais a sua madre superior. E, além do mais, adorou o tempo que teria à sós com ele.
      Quando Kátia estava trancada em seu quarto e deitada à sua cama, ele reapareceu. O homem que desde os seus sete anos aparecia de tempos em tempos em sua vida. Kátia, dessa vez, observou-o com olhos de mulher, apesar da pureza ainda estar inquebrável entre suas pernas.
Em um quarto sem janelas, a voz dele produziu aquela brisa suave que desde a sua infância a persegue:
_Hoje, Kátia, sacramentaremos o nosso casamento.
_Estou pronta para você, meu Senhor, desde que me entendo por gente. Estou pronta hoje, amanhã e sempre.
_Eu sei. Até que a morte nos separe – ele diz, sorrindo delicadamente. – Não tire sua roupa. Abaixe apenas a sua parte de baixo da roupa e deite-se de costas.
Kátia obedeceu e, feliz, deitou-se de costas.
_Levante a sua saia até a cintura e abra um pouco as pernas.
Kátia obedeceu com vontade suprema. Ele continuou sua fala:

_Lindo. Belo. Exuberante. Cabeludo como eu amo, Kátia! Entre a dor e o amor, existe a paixão, por isso você está aqui. Hoje é apenas a primeira vez da sua peregrinação de fé e do nosso matrimônio. Fico feliz por nós, Kátia. Vamos movimentar a vida, como uma verdadeira forma de milagre e entrega – ele diz, cheio de sabedoria, nu e ereto, indo na direção da mais nova e mais feliz freira do convento.

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