sexta-feira, 8 de novembro de 2013

O derradeiro - Conto do livro 'Afetos, abismos & engenharias'

O derradeiro

No canto mais escuro, no local mais vazio do bar, com copos de cerveja pela metade e brigando contra a quentura para não esquentarem, existiam Franco e Luís.
Franco pedia a confiança do amigo mais uma vez:
_Você só tem que grudar o recado em mim. Faz o serviço completo. Os equipamentos necessários e as fitas estarão na bolsa. No final, você leva a bolsa. Deixei uma boa quantia na sua conta. Isso sem falar na nossa amizade. Posso confiar?
Visivelmente, um breve silêncio ecoa. Luís conjectura. Franco espera. Os dois olham-se nos olhos.
_Você sabe que pode confiar em mim. Onde está o recado? – indagou Luís.
Franco procurou no bolso da camisa de botão. Nada. Levantou-se, procurou nos bolsos da calça, e nada. Agoniado e suando, lembrou que tinha enrolado e guardado na carteira o bendito recado. Abriu a carteira com um riso no rosto e deu para o amigo um pedaço de papel com linhas escritas à mão.
_É um poema? perguntou, retoricamente, Luís.
_O derradeiro – assegurou Franco. Ele estava sentado com um riso celestial encravado ao rosto, como regra, e erguia o copo de cerveja com sua mão direta, como se fosse convidar o amigo para um brinde.
No outro dia, à tarde, Franco colocou em uma bolsa: uma pá, uma enxada, copos descartáveis, uma garrafa de água mineral, uma fita adesiva e um frasco de plástico. Trancou sua casa. Janelas, cadeados e portas. Antes de sair pela porta da frente, não sentiu saudade do que deixava.
Pela rua, andarilho, caminhou para o local que escolheu há cinco meses. O local era um matagal na beira do rio.
Franco olhou para o rio. Tinha certeza que o rio refletiria pela última vez seu olhar. Nele, ele banhou e brincou quando criança e jovem. Quando adulto, muito da vida acinzentou. Ficaram sem graça as águas vivas e doces, sobrou a nostalgia em sua memória.
Franco, certeiro, onde tinha planejado, começou a cavar. Quando atingiu a profundidade de três palmos, parou. Deixou a pá e a enxada dentro da bolsa. Pegou um dos copos descartáveis de plástico e a garrafa de água. Pegou o frasco plástico. Encheu o copo d’água e abriu o frasco. Dentro tinham pílulas de diversas cores. Com satisfação e calma, bebeu um copo d’água com as pílulas coloridas, como o arco-íris, em sua língua. Engoliu sem muito esforço. Caminhou até o buraco e deitou-se na terra fria e marrom. Ficou observando os raios amarelados do sol. Observou o céu. Ouviu com mais atenção alguns pássaros cantarem. Ainda é possível ouvir pássaros cantarem nestes tempos. Radiante, pensou. Ainda consciente, cantarolou algumas palavras: Eu vou indo, meu bem. Enquanto o sol não nascer, não voltarei, meu bem. O sol não vai nascer... ; durante esse momento seus lábios escarneciam.
No horário combinado, Luís chegou ao local. Viu o amigo deitado. Sua pele já não tinha mais vida. Seus lábios gracejavam.
Luís, sem perder tempo, foi até a bolsa, procurou e achou a fita adesiva. Desceu até o buraco e colou na camisa do falecido amigo o recado que recebeu um dia antes no bar. Luís saiu do buraco e, com pressa, começou a enterrar o amigo.
Enquanto a terra era jogada por Luís sobre a cova rasa, no corpo frio e suicida de Franco, no recado, o poema derradeiro e suas palavras escritas a punho flutuavam.

Na alma residem afetos, abismos & engenharias.
Porém, descobri que não é a vida que rege a alma
A alma, como um motor, rege a vida.
A culpa pertence a quem espera pela morte.

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Leia o e-book miniatura do livro aqui:
http://issuu.com/joseaugustosampaio/docs/ebookminiaturaafetosabismosengenhar


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