sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Trecho da história "De onde nascem os demônios?" do livro "Narrativas do horror cotidiano"

Trecho da história “De onde nascem os demônios?”

Nessa história, o personagem principal descobre-se em uma insana mudança de hábito, trocando o doce aroma das “maçãs” por uma súbita admiração pelos odores mais putrefatos que conhecemos. 
Nesse trecho abaixo, o personagem principal recebe uma visita, que ele já esperava, e se joga em uma experiência única, que talvez o leve a acordar dessa sua nova realidade.

Dim... dom... Alguém toca a campainha. Era nove da noite. Se não é a Mary, quem pode ser? – ele pergunta-se. Sem pestanejar, atendeu nu e daquele jeito. Uma merda humana satisfeita e iluminada. Eram quatro lixeiros e o mesmo caminhão de lixo que tinha visto no fim da tarde.
_É a sua vez de entrar no caminhão. Você merece – disse um dos lixeiros, o mais gordo, parecia o motorista, olhando firme em seus olhos. Ele nada diz, apenas sorri como um urubu deslumbrado em frente a uma carniça fresca. Nu, ele vai pela rua até o caminhão. Alguns vizinhos estavam na porta de casa e olhavam com olhares de reprovação. Ao passar pela casa do vizinho mais hipócrita e filho da puta da rua, segundo ele, parou e forçou mais uma cagada. Ele fez a cena gritando o nome do filho da puta:
_Paulo Emílio! Paulo Emílio! Venha ver o meu cu cagador.
Depois do ato, saiu desfilando como se estivesse chegando às portas do paraíso ao lado de Gisele. O gordo foi para a cabine. Os outros três passaram correndo pela rua e catando os lixos mais chiques da cidade.  Não precisou de que ninguém lhe ajudasse, jogou-se na boleia onde o lixo era processado. Era realmente o homem mais feliz do mundo. Que sensação é essa em meu coração? Perguntou-se em pensamento, com uma emoção nada discreta e espetacular nas batidas do seu coração. O caminhão deu a partida e os lixeiros vieram correndo atrás, jogando as sacas de lixo em cima dele. Ele abria os sacos e deliciava-se. Dessa vez, não teve pudor algum, comeu tudo que via pela frente. Era muito saboroso. Ele lambia-se e tinha gana nos olhos. Sorria tão feliz que faria o palhaço mais triste do mundo sorrir. Chorava de tanta felicidade. Qualquer pessoa que o visse naquele estado pularia para a boleia, para curtir essa “fortuna esplendorosa” e de grande extravagância. Os seus vizinhos, pessoas de suma importância para o mundo, balançavam a cabeça negativamente como bons cidadãos. Mas os lixeiros pularam em cima do caminhão e equilibraram-se. Ali ficaram fitando-o sem reprovar a atitude daquele cidadão contemplado.
_A gente poderia dizer que você é um marginal, escroto. Mas a gente entende bem de lixo e porcaria – disse um dos lixeiros para o felizardo.
_Cara, não me entenda mal. Mas você é um cara bem apessoado. Bonito. Por que é lixeiro? – com um sorriso avassalador, com muitos fiapos de lixo e restos entre seus dentes, ele pergunta.
_Você ainda não compreendeu que as pessoas bonitas são as que mais produzem lixo... – respondeu, afirmando com olhos de catador. Os outros dois lixeiros observavam calados. Enquanto ele, numa aspiração, estava deitado sobre o lixo, quase mergulhado, como se estivesse em um lago transparente de água doce. Comia alguns dos restos podres das comidas que ali estavam, não só as comidas, mas pedaços de plásticos temperados com odores inimagináveis, papéis higiênicos que já serviram aos cus mais secretos e bem nascidos, guardanapos que já limparam as bocas mais ricas, belas, importantes e corruptas desse mundo. Restos de esmaltes. Óleo velho. Comidas estragadas. Comidas esquecidas e estragadas. Roupas rasgadas e sujas. Camisinhas usadas. Pedaços de papéis com as mais escrotas confissões. Dois dedos, um feminino e um masculino. Pedaços de papel queimado, que antes já tiveram grandes composições. Pedaços de papel com catarro embrulhado. Cinzas. Merdas de cachorro. Merdas de gato. Merda de gente. Vômitos alcoólicos. Vômitos cancerígenos. Vômitos bulímicos. Chorume. Chorume. Chorume. Não faltava o líquido do lixo. Etc. O caminhão começou a processar o lixo, ele não se tocou e continuou a sua pujança sobre o quitute divino. Os lixeiros olhavam a cena e sorriam de canto de boca, eles olhavam como se ele estivesse em seu caixão, sendo velado. Mas ele não estava nem aí. Sorria olhando de volta para os lixeiros, sorria com tanto prazer que sua boca alongava-se parecendo um desenho de charge. E ele chamava-lhes:
_Venham! Tem espaço. Vamos comer do bom e do melhor. Sei que vocês entendem bem o que estou sentindo.
Os lixeiros caíram na gargalhada. Existia uma satisfação entre eles: ele, por estar envolto de um néctar mágico, e os lixeiros, por aguardarem com ansiedade que o caminhão processasse todo aquele lixo. Contudo, ele sentiu em seu pé um aperto. Era o processador puxando-o para o fim, como se fosse uma boca de algum carnívoro e de mesmo gosto que o dele. O aperto aumentou e puxou a sua canela. Nesse momento, o seu pé estava estraçalhado. Ele flutuava entre dor, pânico e prazer. O processador puxou suas pernas por inteiro. Depois seu tronco. Com seus braços, ele ainda puxava seu manjar para a boca, pulverizando-os. No momento em que ele estava quase todo triturado, processado e completamente entregue ao prazer pela chuva do líquido que se fazia no processamento dos lixos e que derramava em sua cara (o chorume), um efeito vibrante de amor puro, exclusivo, celebre e divino explodia em seu cérebro. Os lixeiros, que não paravam de olhá-lo, sorriam de forma histérica com a cena, como se ele fosse comediante de Stand Up fazendo graça na boleia.
                                          
O que será que acontece com o felizardo cheio de prazer?

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